Ria de Aveiro alvo da “maior” intervenção nas lagoas costeiras dos últimos anos

Contrato para as empreitadas de desassoreamento é assinado este sábado, em Ovar, cumprindo um sonho dos agentes locais. Contudo, há quem sustente, com base em estudos, que o que está a acontecer na ria é uma maior amplitude de marés

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Paulo Pimenta

Desta parece que vai ser mesmo de vez. O desassoreamento da Ria de Aveiro está a poucas semanas de avançar para o terreno – o contrato das empreitadas é assinado neste sábado, em Ovar -, para regozijo dos responsáveis políticos locais, bem como das comunidades piscatórias e associações náuticas que vivem da laguna aveirense. “É a maior de todas as intervenções destes últimos anos no litoral e nas lagoas costeiras”, destacou ao PÚBLICO o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, a propósito da obra orçada em 17,5 milhões de euros (mais IVA).

A empreitada irá estender-se ao longo de quase 100 quilómetros de canais e prevê, também, um reforço das margens, bem como a deposição de algumas das areias dragadas no mar. Uma intervenção que se apresenta, para muitos, como a resolução de todos os males da ria – há cerca de 20 anos que é reivindicada uma grande operação de dragagem. Mas há estudos que contrariam a tese de que a laguna aveirense esteja completamente assoreada: o que está a acontecer é um “assoreamento aparente”, motivado por uma maior amplitude de marés, defende João Miguel Dias, investigador da Universidade de Aveiro (UA). Sem deixar de reconhecer a existência de um assoreamento real “pontual” – apenas em “pequenas zonas”, junto a “algumas marinas, portos de pesca ou canais estreitos” –, o especialista em oceanografia física, é categórico: “não há um assoreamento generalizado na ria de Aveiro”.

João Miguel Dias tem consciência de que a sua dedução não é recebida com simpatia no seio de muitos daqueles que vivem em torno da ria, porém, a verdade é que esta conclusão não aparece de “ânimo leve”, sendo sustentada “em dados objectivos”. Quais? Analisando os dois levantamentos topo-hidrográficos feitos na ria - um de 1987/88, da autoria do Instituto Hidrográfico, e outro de 2011, realizado pelo Polis Litoral da Ria de Aveiro – conclui-se que “os canais principais de navegação até estão todos mais profundos do que no passado”.

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Nem todos se lembrarão, mas a verdade é que, no final da década de 90, houve uma grande intervenção de desassoreamento na ria de Aveiro. “Dragagens que as pessoas recordam com saudade, porque vieram facilitar a navegação na ria, mas depois esquecem-se do que foi o contra dessas dragagens: que foi alterar, claramente, a dinâmica de marés no sistema”, alerta o investigador, que é também director do departamento de Física da UA.

E é precisamente essa grande alteração da dinâmica de marés que acaba por, no entender de João Miguel Dias, conduzir ao cenário que levou toda uma região a emitir alertas de que a ria estava assoreada. No fundo, o que acabou por acontecer, de acordo com os vários levantamentos realizados, foi um aumento da amplitude de marés – mais “considerável” nas cabeceiras (Norte e Sul) da laguna. Quer isto dizer que, em baixa-mar, há menos “água do que tínhamos no passado, sendo que numa zona de profundidade reduzida essa zona pode ficar a descoberto”. Volta e meia, atribuem-se culpas à intervenção de dragagem que a Administração do Porto de Aveiro fez na embocadura da barra – esta mais recente – mas os estudos já realizados demonstram que esta obra “não foi a que teve maior impacto” na dinâmica de marés.

A partir da análise do padrão de marés da ria, desde 1987 e ao longo de vários anos (até 2017), o especialista da UA repara que foi a grande operação de dragagem da década de 90 a grande responsável por estas mudanças na laguna, fazendo votos que isso tenho servido de exemplo para o futuro. Tanto mais porque, além de criar problemas de “assoreamento aparente”, esse aumento da amplitude de marés tem também outro efeito negativo, segundo repara o investigador da UA. “Há maiores cotas de preia-mar, ou seja, maiores alagamentos”, vinca João Miguel Dias, reparando que “a área da ria que hoje alaga numa preia-mar é superior à que alagava no passado. Estamos a falar de mais 10 por cento do que passado”, quantifica. Sem deixar de chamar a atenção para esse dado adicional, igualmente preocupante: “o facto de termos uma maior cota de maré também implica que a intrusão salina seja maior que no passado”. Ou seja, não só há mais alagamentos, como a água que chega, em muitos casos a campos agrícolas, é ainda mais salgada.

Outro dos argumentos usados pelo investigador para sustentar a conclusão de que a ria não tem um assoreamento generalizado, assenta na constatação de que importante “para haver assoreamento tem de ter sedimentos”. “De onde é que podem vir os sedimentos para justificar um assoreamento tão grande? Até hoje, ainda não me conseguiram dar a resposta”, testemunha. “Com mini-hídricas, barragens, etc., poucos sedimentos o Rio Vouga transportará, hoje em dia, para a ria”, sustenta. “Alguma parte até pode vir da erosão das margens da ria, porque há muitas que estão abandonadas. Mas será que é suficiente para justificar todo esse assoreamento? Eu acho que não”, conclui.

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Obra pesada pode agravar o cenário

Sem conhecer o plano da obra que agora vai ser feita pela Polis Ria de Aveiro, o investigador diz esperar que a opção tenha recaído numa empreitada “leve, com intervenções pontuais, de reposição de cotas em zonas de acesso a canais, portos, etc”. Uma intervenção deste género, reconhece, “é necessária” e terá “um impacto baixo” na amplitude de marés, “uma coisa de um centímetro”, exemplifica. “Se for uma coisa pesada, receio que o futuro seja pior”, adverte o especialista oceanografia física. O pior representa um maior aumento da amplitude de marés, com maiores picos de preia-mar e baixa-mar, maiores alagamentos e maior intrusão salina.

E se há algo de que João Miguel Dias não tem dúvidas é que, ao contrário do que pretendem as populações, “a ria de há 30 anos já não volta”. “Não tenham ilusões, para termos a ria de há 30 anos tínhamos de ir recuperar tudo o que era marinhas de sal que estão abandonadas, construir muros num domínio imenso, tínhamos que ir repor cotas de fundo no canal de embocadura, repor cotas de fundo nos outros canais e isto não é viável”, avisa. Resta, defende o investigador, “manter esta actual ria da melhor forma possível”.

Ministro garante que ria está assoreada

O ministro do Ambiente rejeita, por completo, a teoria defendida por João Miguel Dias. “Quem for à ria de Aveiro, e eu conheço muito bem a ria, não tem a mais pequena dúvida que ela está assoreada”, argumenta, recusando-se a comentar o cenário traçado pelo investigador da UA. Matos Fernandes recorda que esta era uma obra que vinha sendo reclamada há 20 anos e que acaba por assumir-se como “a maior de todas as intervenções destes últimos anos no litoral e nas lagoas costeiras”.

“Estamos a falar de dragar, em 95 quilómetros de canais, um milhão de metros cúbicos de sedimentos, cujo destino reparte-se mais ou menos assim: 200 mil metros cúbicos são para colocar no litoral, na ante-praia; e os outros 700 metros cúbicos são para reforçar e altear as margens da ria, garantindo também que se reduz a erosão e se protegem os terrenos agrícolas”, argumenta o titular da pasta do Ambiente, que presidirá à cerimónia de assinatura dos contratos, agendada para este sábado. “A salinidade da ria tem aumentado e é da maior importância altear os terrenos agrícolas que existem à volta da ria para garantir que o sal não chega lá e possam continuar a ser usados para fins agrícolas”, nota, ainda, Matos Fernandes.

A importância desta intervenção estende-se, igualmente, às actividades da “pesca” e para “a navegação turística”. “As embarcações vão poder chegar a locais onde hoje não chegam porque a ria está assoreada”, realça o governante. Além de que, faz ainda questão de notar, a obra contempla o balizamento e a sinalização dos canais de navegação.

A empreitada vai estar a cargo do agrupamento de empresas ETERMAR - Engenharia e Construção, S.A., Manuel Maria de Almeida e Silva & CIA., S.A. e Rhode Nielsen AS - Sucursal em Portugal, e deverá estender-se ao longo de 15 meses. Matos Fernandes estima que os trabalhos possam iniciar-se na segunda quinzena de Março, com a perspectiva de “no início da época balnear de 2020, a obra possa estar pronta”, antevê o ministro.

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