Aqui, agora, não conseguimos desviar os ouvidos de Jasmim

Culto da Brisa é um álbum encantado e encantatório. São tropicalismos de Caetanos, fraseados de Faustos sonhadores, folk-rockers anglo-saxónicos, todos a falar de nós, para nós. São nove canções e não dispensávamos uma que fosse

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A flauta sopra dolente, som mistério, som feito paz, e tudo em volta ganha tons de beleza primaveril, mais ainda quando o dedilhado da guitarra se introduz discreto, mais ainda quando a voz dá verbo ao que o som sugere. É o início de um álbum, é um lugar. E Jasmim não está a mentir quando canta “esta guitarra já foi pedra a este olhar”, como o faz em Erosão, primeira canção do seu primeiro longa-duração, o encantado e encantatório Culto da Brisa. Jasmim, que é nome com o qual assina Martim Braz Teixeira, não nos está a enganar com a poética das palavras quando diz que esse instrumento, outrora um mistério insondável, é agora para ele uma praia: “vou para onde ela me levar”, canta na sua voz delicada, a voz ideal para esta música que é desejo de vida e serenidade, que carrega em si a vontade de sentir o mundo de forma luminosa e graciosa, mesmo se, em volta, tudo é desconfortavelmente ruidoso, feio, pesado (ou precisamente por isso).

Enquanto houver algo para dar / Enquanto a Terra for o meu lugar / Enquanto a morte servir para lembrar / Que enquanto houver tempo será para cantar / Contigo, agora”. Aqui, agora, assim se apresentou Culto da Brisa, guitarra de doze cordas abrindo planuras sob um céu de flauta e um coro de vozes a dar força comunal à melodia. “Acima das possibilidades / Caretas e autoridades / Um mar de oportunidades / À espera das nossas vontades”. Aqui, agora, não conseguimos desviar ouvidos e olhar deste Jasmim que nos floresceu, que nos oferece um álbum com marca pessoal vincada, mas apoiado numa vasta comunidade – a determinante Violeta Azevedo, cujo magnífico trabalho nas flautas e sintetizadores é componente essencial do disco, Bia Dinis (April Marmara), Filipe Sambado, os membros dos Mighty Sands e os associados à Spring Toast, a editora fundada pela banda, como o produtor João Alves (teclista dos Hércules), e à Maternidade, promotora/editora que lança Culto da Brisa, e todos os restantes que com as suas vozes, com violinos, tablas ou adufes, ajudaram a concretizar a visão do seu criador.

Jasmim, que conhecemos enquanto teclista dos lisboetas Mighty Sands, inspirado combo de rock’n’roll vogando em surf-rock adulterado, narcótico, ideal para viagens interestelares ou no escuro do clube; Jasmim, que descobrimos enquanto autor quando, há três anos, editou Primavera, folk animista solar, um verdadeiro nascimento, em resumo, surge agora com Culto da Brisa e não conseguimos conter o entusiasmo e é difícil esconder o espanto. É certo que, entre aquela canção primeira e o álbum de estreia, houve um EP, Oitavo Mar, e que, nele, já se desenhavam certos traços – a folk feita matéria divagante, a voz que se impõe pela certeza das palavras, não pelo volume, o prazer em fazer do som extensão do espaço natural -, mas o álbum agora editado e que terá concerto de apresentação dia 8 de Fevereiro da Galeria Zé dos Bois, em Lisboa (22h, com o guitarrista irlandês Cian Nugent na primeira parte), é de outra dimensão.

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Se o seu futuro, assim julgava Martim Braz Teixeira, seria o cinema, a música era presença constante, paixão alimentada diariamente e Martim até se lembra de se pôr a imaginar que, se tivesse mais uma vida, seria músico e não tentaria ser cineasta

Jasmim pode dizer, como diz ao Ípsilon, que “o objectivo a longo prazo é procurar sempre a sensação de liberdade”, mas o disco que agora edita não soa a procura: soa a obra completa. Um manifesto convicto, sem a arrogância de querer impor a sua vontade, um corpo tentacular que se estende a tropicalismos de Caetanos acústicos, a fraseados de Faustos a sonhar viagens para paragens orientais longínquas, a folk-rockers ingleses e americanos, de ontem e de hoje, em busca de si mesmos em suaves tonalidades psicadélicas. Martim Braz Teixeira vai onde Jasmim o levar - “O sonho mostra-me o caminho / Percorrê-lo, meu perpétuo destino”, ouvimos em “Mora”. Essa é a sua grande convicção. E, contudo, tudo podia ter sido completamente diferente.

Cinema fechado, venham as canções

Martim Braz Teixeira não chegou aos Mighty Sands para ser músico. O objectivo era ser responsável pelo registo em vídeo e fotografia da vida da banda. Fazia sentido. Martim tinha “18, 19 anos” e estava “completamente noutra”. O seu futuro, assim o julgava, seria o cinema. “Estava prestes a entrar no Ar.Co e o meu sonho era ser director de fotografia. Era, pelo menos, o sonho mais definido que tinha na altura”, corrige – também estava no auge, diz com um sorriso, da sua carreira de “inliner profissional”, mas as competições de patins em linha são outra história de outra vida que já acabou. A música era presença constante, paixão alimentada diariamente e Martim até se lembra de, na altura, se pôr a imaginar que, se tivesse mais uma vida, seria músico e não tentaria ser cineasta - “o que era ridículo, tendo em conta que só tinha 18 anos”.

Andava então às voltas com a ambição de ser director de fotografia, às voltas com os planos de Gaspar Noé, Leos Carax, Richard Linklater “e tantos mais” – “ficávamos aqui horas a falar dos autores de que mais gosto”. Acontece que ao homem a que seria entregue uma câmara e uma máquina fotográfica para registar os Mighty Sands foi sugerido que pegasse numa pandeireta para ajudar numa canção. E que, depois da pandeireta, Martim embrenhou-se mais. “Adorava o som do órgão e achava que Mighty Sands com órgão ia ficar uma cena…”. Guiado por Teresa Castro, guitarrista e vocalista da banda (que também assina enquanto Calcutá e que integra as Savage Ohms), aprendeu os rudimentos do instrumento.

Entretanto, as portas do cinema fecham-se todas – nem trabalho, nem estágios, nem projectos passíveis de serem concretizados - e Martim troca de sonho. “Encontro uma comunidade que me recebe de braços abertos e onde sinto uma grande partilha. Podia falar dias seguidos das jams na Interpress [edifício no Bairro Alto, em Lisboa, que acolhia salas de ensaios onde se reuniam os Mighty Sands, Alek Rein, Filipe Sambado, Luís Severo ou as Pega Monstro]. De repente estou numa banda, de repente acordo a pensar em música, deito-me a pensar em música”. De repente integra os Mighty Sands, dá concertos pelo país e galga fronteiras com eles. “Mas a minha pica era tanta, a minha vontade de fazer era tanta que não conseguia dar vazão a tudo em Mighty Sands. Não conseguia. O meu lugar não era esse. Assim que se abriu uma porta…”. Assim que se abriu uma porta, que chegou num ensaio nocturno, ele a trautear uma melodia, o guitarrista e vocalista Chaby Mendonça a perguntar se aquilo era uma canção, e era mesmo, viria a chamar-se Primavera, Martim descobriu-se – Jasmim seria o seu nome.

Revolução serena

Martim acaba de gravar Mora na casa de Azeitão, com sala transformada em estúdio de gravação, onde foi registado Culto da Brisa. Abre as portadas e sai para a rua – “e isso está no disco”. Martim prepara-se para gravar Agosto. Estamos ainda no Inverno mas, naquele dia, o sol brilha no céu pela primeira vez – e por isso Martim e os que o acompanham não resistem a levar o material para o exterior e a gravar ali a canção. Outras canções pedem o refúgio silencioso da noite e, assim sendo, pela noite espera a gravação. E isso está tudo lá, no coração do álbum, afirma Martim. “Não tenho qualquer formação, portanto, não sei se penso música como um compositor pensa música”, diz ao Ípsilon. “Trabalho numa produtora e produzo conteúdos audiovisuais de todo o tipo. E quando arranjo tempo continuo a realizar videoclips e a filmar em Super 8, o que me dá muito prazer. Se calhar penso música como penso imagem”, sugere. Nele, a criação musical é um processo lento, orgânico, que se sente no resultado final. “Demoro muito tempo a gravar uma música”, concede. “A voz, por exemplo. Posso querer gravar uma voz hoje e não conseguir. Ao longo de duas semanas, posso ter gravado um registo na terça, outro na quinta, mas tentei todos os dias. Tem que fluir correctamente, tem que ser o dia certo”.

Culto da Brisa começou a nascer no final de 2017. Ao longo dos meses, foram caindo canções de um núcleo inicial, outras foram nascendo durante o processo. “Para mim é uma canção de cada vez. Saem assim, é muito ingénuo, mas depois talvez se comece a formar um certo microcosmos”, reflecte. Esse microcosmos existe realmente. Há algo a ligar a empolgante Aqui, agora à memória tradicional a desaguar em gentil viagem space-rock de Vai nascer; há um canal a conduzir Meu irmão, primeiro peça nocturna para diálogo entre voz e violino, depois folk-rock em andamento lento, à despedida ao piano (e flauta, sempre a flauta de Violeta Azevedo) da primeira parte de Ouro Prata e Jasmim. Há muito que liga aquele “Acabou-se a guerra, quero paz”, mote de Vai nascer, ao “Não te cales meu irmão” que ouviremos mais tarde, antes da despedida: “por mim, era sempre assim / mais a sonhar do que acordado / abençoado seja este estado”. Por fim, há muito que emana, por todo o álbum, daquele Aqui, agora que o apresentou.

Há um par de semanas, escrevíamos numa das crónicas que abria a edição do Ípsilon: “Aqui, agora, deparamo-nos com alguém que, com leveza no espírito e desejo de fantasia, pesa com bem-vinda gentileza o sabor dos tempos. Fá-lo consciente de que temos em nós tudo o que fomos (e ele tem consigo os tropicalistas brasileiros, os renovadores da folk inglesa, os sonhadores californianos, as vozes que deram corpo em Portugal, nos anos 1970, a uma nova música). Fá-lo iluminando, com frágil doçura na voz, a escuridão que alastra”. Dizemos a Martim que assim sentimos Culto da Brisa, qual proposta de revolução serena, de refúgio visível perante todo o ódio, todas as barreiras, todo o conflito e berreiro num mundo em que todos querem ter razão o tempo todo. “Cada música tem a sua história, mas há momentos de sufoco. Sinto esse sufoco e preciso de pegar na guitarra e estar aos berros em casa até àquilo passar um bocado”. Essa é uma parte. Há outra: “Às vezes estou a sonhar, outras vezes estou mais alerta e consciente. Este disco continua com essa dualidade e eu próprio não consigo perceber bem onde me posiciono, se sou mais o Jasmim da floresta onírica, se sou o outro”.

Acabou-se a guerra, quero paz”, canta ele. E depois a guerra recomeça novamente e a paz há-de sobrevir. Entre um momento e outro, sobram canções. Culto da Brisa tem-nas todas. Não dispensamos uma que seja.

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