Filipe Sambado: Vida a sério em corpo de fantasia

O primeiro álbum de Filipe Sambado é uma irresistível colecção de canções. É pop onírica arrancada à biografia pessoal. Este ano, não lhe poderemos escapar. Não deveremos.

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Filipe Sambado chegou completo: são as canções e as palavras que as abrem em novos sentidos, é a forma como se apresenta, numa androginia afirmada como liberdade estética e expressiva Diana de Sá

“Não dá p’ra ficar sentado com tanto por cantar”, diz Filipe Sambado mesmo no fim de Vida Salgada, o seu primeiro álbum. Nessa canção, Já não vou sair daqui, corolário obrigatório da viagem cumprida em nove músicas, há outros versos, versos chave repetidos mais que uma vez para que não os esqueçamos: “Eu já não vou sair daqui a bem / a mal já eu cheguei”.

Filipe Sambado chegou. Chegou completo: língua bem afinada em pop enublada, onirismo Connan Mockassin enfiado em tropicalismo cá da terra, gentileza melódica que conforta enquanto, no mesmo movimento, se constrói em inquietação. “Andei obcecado com uma frase: dançar a sofrer”, diz ao Ípsilon entre o ruído de veraneio turístico no Largo do Carmo, em Lisboa. “Como é que consigo passar essa sensação: até estou aqui com vontade de bater o pezinho, mas isto deixa-me num sítio em que não tenho a certeza de querer estar?” Tudo explicado em Vida Salgada, disco obrigatório neste ano discográfico português.

Sambado cresceu entre o Alentejo e o Algarve. Vida em movimento, em mais que um sentido. Entre a casa da mãe e a casa do pai, entre o hip hop que ouvia no bairro social de Lagos em que crescia, e no qual teve as primeiras experiências enquanto músico, e o rock anglo-saxónico que o pai lhe passava em compilações ao fim-de-semana. Aos 19 anos, chegou a Lisboa, para estudar Dramaturgia na Escola Superior de Teatro e Cinema. E esse foi, sem Filipe o saber, o primeiro passo para chegar onde o encontramos agora.

Filipe Sambado foi membro dos Cochaise e é baterista de Chibazqui, banda onde encontramos Diego Armés, ex-Feromona, Silas Ferreira, dos Pontos Negros, e C de Croché (editaram em 2015 o recomendadíssimo Planos Para o Futuro). Também foi ele o produtor de Até Morrer, álbum dos Passos Em Volta, grupo emblemático da Cafetra. E, antes de tudo isso, vimo-lo envolvido em Muda Que Muda, o segundo álbum de João Coração.

Coração estudava cinema. Era colega de Sambado na Escola Superior de Teatro e Cinema. Encontraram-se os dois na rodagem de uma curta-metragem. Foi o “ponto de viragem” de Filipe Sambado. Não só por toda a música que Coração lhe apresentou, mas porque ali, nas sessões musicais, ia-se deparando com uma pequena comunidade que se revelaria fundamental no futuro. “Conheci o Luís Severo [na altura assinava como Cão da Morte] e muito mais gente, numa altura em que a febre Flor Caveira estava já numa fase avançada”.

Porque é isto importante? Porque Luís Severo tornou-se um dos músicos e amigos mais próximos de Sambado, com uma competição saudável alimentada entre os dois. Porque, apesar de escrever em português desde as primeiras rimas algarvias no hip hop, “sentia sempre que havia uma dificuldade muito grande em trazer para nossa língua o que queríamos dizer”. Com a malta da Flor Caveira e nomes livremente associados, descobriu quem fizesse como ele desejava. “Mesmo sem os conhecer, já sentia uma afinidade muito grande na forma como distribuíamos a métrica e a intensidade das palavras”.

Algum tempo depois, Diego Armés recomendou-lhe umas certas Pega Monstro, de uma certa Cafetra, que acabavam de editar o primeiro EP. Sambado merguloua nesse mundo pré-histórico que é hoje o do MySpace, ouviu tudo o que a Cafetra tinha para dar e parou nos Passos Em Volta. Entusiasmou-se tanto que entrou em contacto com a banda, propondo-se para lhes produzir a próxima edição. Intenção da fã: “Quero gravar-vos porque quero ouvir isto melhor”. Nascia uma relação próxima com os membros da banda e do colectivo.

Avançamos até 2015. Sambado preparava-se para fazer as misturas de Souvenir / Dias de Calor, single em estado de graça dos Flamingos, formados por Luís Severo e Coelho Radioactivo. Ouve-o e o deslumbramento que sente torna-se um desafio. “Estes dois são meus amigos e estão a puxar isto para uma fasquia que é intolerável. Não pode ser”, recorda com um sorriso. “Ou continuo a fazer as cançõezinhas que tenho andado a fazer ou faço qualquer coisa que me permita também chegar ali”.

Um ano depois, chegou Vida Salgada, o primeiro álbum de Filipe Sambado, o grande salto em frente depois dos EPs Isto É Coisa Para Não Voltar a Acontecer e 1234, de 2012, e Ups… Fiz Isto Outra Vez, de 2014. Nele, uma voz que sussurra, música que cresce em ambiente de sonho que conforta enquanto a voz fala de paixões e desejos, de biografia feita e por fazer. “Antes queria não viver / do que andar a viver mal / dá-me beijos sem saber / dá-me vida com mais sal” (em Vida salgada); “Já lavrei terra no campo / Já lancei redes ao mar / Agora vim p’rá cidade / Aprender e ensinar a amar“ (em Aprender e ensinar).

Com Vida Salgada, Filipe Sambado torna-se nome a descobrir urgentemente – quem já o descobriu limita-se a regressar vez após vez a este universo de vida a sério em corpo de fantasia. Filipe Sambado chegou completo: são as canções e as palavras que as abrem em novos sentidos, é a forma como se apresenta, numa androginia afirmada como liberdade estética e expressiva. “Aos quatro anos vestia-me de avozinha do Capuchinho Vermelho e a minha mãe sempre me transmitiu que isso estava acima de questões de género”, conta. “Como costumo dizer, em palco sou o Filipe Sambado 2.0. Não me anulo, nem me transcendo. Não fujo à honestidade, estou a ir mais longe na explicação [da música]. O que faz com que [essa ‘dramaturgia’ no palco e na imagem projectada] seja melhor ou pior é a forma como o conteúdo audiovisual vai ao encontro do que se está a fazer musicalmente. É aí que não podes ser desonesto”.

Digamos então que Vida Salgada não tem pingo de desonestidade. E como é deslumbrante a verdade de Filipe Sambado. 

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