A luminosa revelação de April Marmara

New Home pode ser álbum de estreia, mas surge perante nós como universo plenamente formado. Folk encantatória, sonhadora e viajante, inspiradora. Assina-o Beatriz Diniz, April Marmara de seu nome.

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Martim Braz Teixeira

Ela recorda-se do calor, do calor intenso daquela noite de Verão. Recorda-se de ter sentido que, se calhar, nem conseguiria ver tudo com atenção quando entrasse na sala, onde estaria mais calor ainda. E a verdade é que estava sozinha e nem conhecia muito bem a música da cantora que ali iria tocar. Recorda-se também, de forma vívida, do que aconteceu a seguir. E ela, e nós, temos isso para agradecer. Porque foi o que aconteceu depois que nos conduziu aqui, a este momento em que descobrimos um disco chamado New  Home.

É o primeiro que April Marmara assina e surge perante nós como universo habitado por uma folk tão tocante quanto imponente. É cantado em voz segura e evocativa, amparado no piano que responde à guitarra, engrandecido pelos apontamentos do órgão como harmónio, pelas percussões discretas ou pela viola de arco que decora o espaço sonoro como orquestração completa. April Marmara, ou seja, Beatriz Diniz, diz que New Home, o título, deve ser lido de forma literal. Ou seja, é mesmo a sua nova casa. “Não sei se já está arrumada, mas está a tudo a ir ao sítio”. Podemos deixá-la descansada. New Home ergue-se, gracioso, como universo plenamente formado. Está tudo muito bem arrumado.

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Martim Braz Teixeira

Beatriz Diniz tocava guitarra. Tocava-a em casa e tocou-a numa banda de versões, aquele inevitável primeiro passo, ao lado de colegas de escola que conhecemos hoje bem (Teresa Castro e João Farmhouse, respectivamente a guitarrista e vocalista e o baixista dos Mighty Sands). Tocou-a mais tarde integrando Jasmim, o projecto de outro Mighty Sands, o teclista Martim Braz Teixeira, ou as Savage Ohms, que reúnem a supracitada Teresa Castro, Joana Figueroa e Violeta Azevedo. Mas April Marmara, e a nova casa que April Marmara construiu, só começou a nascer nessa noite quente de Verão em que Beatriz saiu sozinha para ver um concerto na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Era Angel Olsen, a cantautora norte-americana, autora dos celebrados Burn Your Fire for no Witness e My Woman, aquela que Beatriz veria em palco. É essa noite que recorda ao Ípsilon num banco de jardim, ao solar final da manhã.

“Não tinha expectativas nenhumas, até porque não conhecia quase nada da música dela. Até pensei que podia sentir-me mal com todo o calor, mas depois ela entra, começa a cantar e pôs tanta energia no palco. Impressionou-me, primeiro, por estar sozinha em palco, o que pode ser assustador, e depois por ter aquela força imensa e garra na voz. Foi tão inspirador”. Nessa noite, Beatriz caminhou até casa com uma canção na cabeça. Uma canção sua. Não a ouvimos em New Home, mas foi ela que abriu caminho para o disco. Angel Olsen abriu inadvertidamente caminho para ele, mas foi April Marmara que nasceu.

A música que ouvimos tem um contexto: era Beatriz e a guitarra, canções feitas território de intimidade exposta, feitas viagem interior, catarse, e desejo de escape. “Fazer folk foi o meu instinto, o que me fez mais sentido, inspirada também, claro, por muitos dos artistas que ouço mais e que mais gosto de ouvir” – uma lista rápida, necessariamente incompleta, incluirá Nick Drake, Vashti Bunyan, Josephine Foster, White Magic, entre muitos outros. Incluirá algo determinante nesta história. “Em determinado momento, comecei a ver toda a gente ao meu redor [fala dos amigos da Spring Toast Records, a sua editora, fundada pelos Mighty Sands, fala dos comparsas da editora/promotora Maternidade, a que pertence] a tocar e a fazer música e pensei ‘bora lá tentar, porque não?’”. Porque não? Sim, incondicionalmente.

Quando, canções a nascer, surgiu a oportunidade para o primeiro concerto, em 2016, Beatriz sentiu que precisava de alguém que a acompanhasse em palco. Juntou-se então a amiga Teresa Castro. “A partir daí, evoluiu para outro formato e, quanto mais fui tocando ao vivo, mais senti a necessidade de acrescentar qualquer coisa. Convidei o Martim [Braz Teixeira] para tocar teclas e percussões e, mais tarde, a Catarina [Marques] na viola”. Foi este quarteto que registou New Home no estúdio caseiro da Spring Toast Records. O resultado, desde que o som raspado das cordas da viola de arco dá lugar ao acorde aberto de uma guitarra – estamos em Blossoms, a primeira canção -, desde que a guitarra encadeia os primeiros acordes, anunciando a voz que chega, cheia e dolente, expressiva nas palavras que canta e nas entoações que lhes dá, serena e sonhadora, é uma magnífica surpresa, uma revelação.

O nome escolhido por Beatriz é, desde logo, indicador do temperamento da sua música. "Não queria assinar com o meu nome, porque canto em inglês e porque queria mesmo criar uma personagem", explica. "Nunca fui a Marmara [zona na Turquia banhada pelo mar Egeu], mas queria no nome algo de mar. Marmara foi o que melhor resolveu isso”. New  Home é realmente música que viaja – e não falamos simplesmente do comboio que se imagina a partir para outras paisagens em 16. Falamos da forma como a encantatória New  Home, a canção título, nos transporta para algo de primevo, de primordial, com o timbalão a marcar o ritmo, com o harmónio soprando brisa retemperadora e a guitarra encantatória correndo com a voz, que se esconde e se expõe nos momentos certos. Falamos dos ecos nocturnos da guitarra que ecoa, tremeluzente, na majestosa lullaby que é Bad  scorpions. Falamos da melancolia de Mistery girl, qual lamento de velho clássico rock’n’roll transformado em pérola folk ideal a uma Karen Dalton ou, porque não, Angel Olsen. Falamos de Alfazema e da força telúrica dos seus arranjos. Falamos, em resumo, desta forma de tratar a canção como espaço que se abre perante nós para revelar um novo lugar. Nele, voz irresistível, bem-vinda fantasmagoria, descobrimos April Marmara.

“Estive tanto tempo fechada em casa a tocar que, agora, só quero vir cá para fora”, diz-nos quando a entrevista se aproxima do final. Pois bem, aqui a temos agora, a mostrar-se entre nós. Aproveitemos o que nos traz. Vale a pena cada minuto.

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