De Zweig a Jasmim, o presente que já foi

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Jasmim

Estava esquecido na banca de uma feira e foi um portal que se abriu. Um velho disco de 78”, habituado a fonógrafos de tempos idos, a rodar numa casa destes tempos. Mais que uma voz e, pela sua potência, um corpo que se adivinha grande e bojudo, preservava vivo um tempo já morto. Duarte Silva, então actor de grande popularidade, dava voz, em paródia ao clero, aos novos tempos da República (a edição será de 1911). Na cançoneta A Brincadeira do Frade, o humor é de fraca qualidade, tal como a interpretação. Duarte Silva engana-se e corrige imediatamente o início de uma frase e o acompanhamento musical nem sempre o segue no tempo certo, mas tudo o que está tecnicamente errado comove por parecer vida viva capturada por acaso pelas maravilhas da (então) tecnologia de ponta. Estamos aqui, hoje, e estamos ali, há um século, naquele tempo que já não existe, tão distante que miúdo nenhum sabe o que é um fonógrafo e contar-se-ão pelas mãos os adultos que sabem quem foi Duarte Silva. E, no entanto, que é aquele A Brincadeira do Frade, ou a bem menos subtil “Pela greta da cancella” gravada no outro lado do fonograma, senão o vídeo do YouTube em que um cantor de música popular portuguesa faz trocadilhos picantes em canção de grande sucesso num arraial de Verão?

A descrição do mundo que desaparece sob escombros, esmagadas que ficaram as suas vivências, a sua cultura e o futuro ambicionado que nunca chegou a cumprir-se, impressiona e deixa até uma sensação de nostalgia. Mas n’O Mundo de Ontem de Stefan Zweig [Assírio & Alvim, Dezembro de 2017], livro de memórias que um homem dedica à sua torturada geração, a que viveu duas guerras mundiais, isso impressiona tanto como o hoje que se vê naquele ontem relatado pelo escritor entre a sua Viena ou a sua Paris.

A convicção de que o inimaginável nunca chegaria, apesar de ser evidente que tudo se alinhava para que ele pudesse chegar, a crença na intrínseca bondade da evolução tecnológica, enfim, a certeza de que os alicerces da civilização, com a sua arte, com o seu cosmopolitismo, com o seu crescente bem-estar, eram sólidos até à indestrutibilidade. É impossível não sentir as sombras desvalorizadas pelos da sua geração, no início do século XX, como ameaçadoramente semelhantes às que vemos erguerem-se do outro lado do Atlântico, em vários pontos da Europa e da Ásia, ou a tentarem insinuar-se aqui mesmo, ainda boçais e trapalhonas, em programas televisivos de canais generalistas. Zweig viu o seu mundo desaparecer sob os escombros de duas guerras, e, no entanto, a ficção científica que seria, a seus olhos, este que habitamos está prenhe do mesmo desconfortável zeitgeist.

Aqui, agora, então. Aqui, agora, deparamo-nos com alguém que, com leveza no espírito e desejo de fantasia, pesa com bem-vinda gentileza o sabor dos tempos. Fá-lo consciente de que temos em nós tudo o que fomos (e ele tem consigo os tropicalistas brasileiros, os renovadores da folk inglesa, os sonhadores californianos, as vozes que deram corpo em Portugal, nos anos 1970, a uma nova música). Fá-lo iluminando, com frágil doçura na voz, a escuridão que alastra. Assina Jasmim e é Martim Braz Teixeira, teclista dos lisboetas Mighty Sands. O seu álbum de estreia a solo, Culto da Brisa, só chega na próxima segunda-feira, mas o single que o antecipa já pode ser ouvido. Tem título muito acertado:
Aqui, agora.

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