“Fizemos o que podíamos e o que não podíamos”

Portugal nunca se encarou como um país de asilo ou de exílio. O seu papel, ao permitir a entrada e estadia de refugiados, foi o de “uma sala de espera” para homens e mulheres em trânsito para o Novo Mundo.

Numa altura em que se comemora o Dia Internacional de Memória das Vítimas do Holocausto, lembro o papel da Comunidade Israelita de Lisboa numa época tão dramática como a que se viveu entre 1939 e 1945.

Como se sabe, Portugal proclamou a neutralidade logo a 1 de Setembro de 1939 no mesmo dia da invasão da Polónia e do início da II Guerra Mundial. Quando chegavam a Lisboa, os refugiados eram apoiados por diversas organizações judaicas americanas, como a Joint e a Hicem, que financiavam a assistência aos judeus refugiados e a sua emigração para o continente americano e para a Palestina, assim como por organizações nacionais, como a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL), a Cruz Vermelha e por muitos homens e mulheres de boa vontade, como os irmãos Joel e Samuel Sequerra que, actuando em Barcelona, em nome da Joint e da Cruz Vermelha, conseguiram salvar muitos refugiados encaminhando-os para Portugal.

Em Lisboa, membros da Comunidade Israelita e do Hehaber — organização de juventude israelita — criaram, logo em 1933, a Comassis, Comissão Portuguesa de Assistência aos Judeus Refugiados. Com a entrada na guerra dos EUA em 1941, começa uma nova fase no trabalho de assistência aos refugiados judeus: de acordo com a Joint e a Hicem, é a própria Comunidade Israelita que assume directamente todo o apoio, através da Secção de Assistência aos Refugiados, dirigida por Elias Baruel, médico e vice-presidente da comunidade.

De facto, quer do ponto de vista financeiro, quer do ponto de vista do relacionamento, nomeadamente com o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a PVDE, era fundamental um organismo português que gozasse de credibilidade. Tendo à sua cabeça Moses Amzalak, vice-reitor da Universidade Técnica de Lisboa, a comunidade tinha um grau de integração na sociedade portuguesa que lhe permitia desempenhar o papel de interlocutor entre os refugiados, por um lado, as autoridades portuguesas e os organismos judaicos internacionais de assistência, por outro.

Sessenta anos depois da sua fuga do campo de trabalho de Vernet em França, onde estava internado como resistente e como judeu, Fritz Teppich recorda a sua chegada clandestina a Portugal, no Verão de 1942: “Atravessei os Pirenéus a pé, passei a fronteira sem problemas e quando cheguei a Elvas apanhei uma camioneta para Lisboa. Aí encaminharam--me para a secção de refugiados da Comunidade Israelita de Lisboa, na Rua do Monte Olivete, n.º 16, onde recebemos ajuda imediata. Era aqui que vinham ter todos os refugiados. Através da comunidade, para além de cuidados médicos e, ocasionalmente, dinheiro para despesas de vestuário, recebíamos um subsídio semanal de 750$00 que para nós não era muito, mas para os portugueses era bastante dinheiro. Um salário médio era de 150$00!”

Os refugiados recebiam também vales para pagar o alojamento em pensões e hotéis em Lisboa e nas “zonas de residência fixa” com os quais a CIL tinha acordos, e também o vestuário em armazéns e lojas. Para os que estavam em Lisboa e necessitavam de comer na Cozinha Económica, gerida pela comunidade, eram-lhes distribuídas senhas de refeições. Fundada em 1899 e situada na Travessa do Noronha, chegou assim a fornecer centenas de refeições diárias aos refugiados. Isaac Bitton, filho da cozinheira, lembra que entre esses refugiados se encontrava por vezes um português muito especial, vítima da injustiça de um regime que não lhe perdoou a desobediência, Aristides de Sousa Mendes.

Para além da assistência gratuita no Hospital Israelita, quando era solicitada a CIL fornecia igualmente assistência religiosa aos refugiados judeus, incluindo os enterramentos. Na campa de Gabriel Reich no cemitério judaico em Lisboa, pode ler-se a seguinte inscrição: “Nem Auschwitz nem Dachau conseguiram vergar o amor à vida e à esperança num mundo melhor do homem que aqui repousa.”

Um outro tipo de assistência, fundamental, mas muito mais complexa, era a resolução de todo o tipo de problemas relacionados com as autoridades oficiais, nomeadamente com a PVDE. Em particular o prolongamento dos vistos de trânsito que Portugal só dava a quem tivesse visto de entrada noutro país e a problemática regularização dos “ilegais”, ou seja, os que não tinham nem vistos de trânsito, nem de entrada noutro país. Muitos destes eram instalados em pensões que não exigiam, por acordo prévio com a comunidade, o registo do nome. Mas, com os ilegais, a PVDE era de uma total intransigência e havia rusgas permanentes. Aqueles que a PVDE suspeitava de simpatias com o comunismo eram encarcerados ou até deportados para o Tarrafal. Assim, não só era necessário tentar libertar os presos, como convencer os ilegais a se apresentarem à Polícia, única forma de obterem vistos de trânsito e de entrada noutros países. Isto era dramático, porque muitos receavam ser deportados para os países de origem ou até para os campos nazis.

Finalmente, ainda no campo das negociações com as autoridades para os refugiados que viviam em sistema de residência fixa, era necessário pedir uma autorização especial à PVDE para se poderem deslocar a Lisboa ou a outro sítio.

A guerra acabou em 1945, mas a ajuda humanitária prolongou--se muito para além desta data, devido à situação dramática em que ficaram os milhares de sobreviventes, que erravam pela Europa, sem lar, nem pátria, doentes, com profundos traumatismos físicos e psíquicos. Em Portugal, o apoio financeiro dos organismos estrangeiros, nomeadamente a Joint e a Hicem, manteve-se até 31 de Dezembro de 1950. Mas a Comunidade Israelita decidiu manter activa a Secção de Assistência aos Refugiados, em primeiro lugar para aqueles que ainda permaneciam no país, mas também para apoiar a busca desesperada dos familiares desaparecidos.

“Fizemos o que podíamos e o que não podíamos”, afirma Yvette Davidoff, nascida em Viena e chegada a Portugal em 1942, vinda de Paris, onde se refugiara com a mãe em 1935: “Entrámos no comboio em Madrid, mas já não tínhamos mais dinheiro para pagar as passagens para Lisboa. Quando o revisor veio, a minha mãe ofereceu-lhe o seu anel. O revisor respondeu: ‘Não precisa de me dar nada. Vou pagar os bilhetes das senhoras e também o jantar no restaurante do comboio...’ Este foi o nosso primeiro contacto com os portugueses, que nunca esquecerei.”

Portugal nunca se encarou como um país de asilo ou de exílio. O seu papel, ao permitir a entrada e estadia de refugiados, foi o de “uma sala de espera” para homens e mulheres em trânsito para o Novo Mundo. Também lucrou do ponto de vista económico com a estadia dos refugiados, cujos custos eram assumidos pelos próprios ou pelas organizações de apoio, e do ponto de vista político, sobretudo depois da guerra, através da imagem humanitária que transmitiu.

Mas a neutralidade portuguesa foi de facto importante não apenas para a população, poupando-a às dramáticas consequências da guerra, mas para todos aqueles que conseguiram salvar-se através desta estrada para a liberdade que foi Portugal. Esses levaram para sempre a imagem de um povo generoso e amigável que, embora desconhecesse frequentemente as razões que traziam os estrangeiros até este canto da Europa, se mostrou quase sempre solidário e compassivo.

À pergunta que nos surge persistentemente ao espírito — “Podia ter-se feito mais?” —, não tenho dúvida em dizer que sim. Numa situação tão trágica como a que se vivia, qualquer avaliação é profundamente insatisfatória. Portugal podia ter feito mais, o mundo podia ter feito mais, as próprias organizações judaicas internacionais, os judeus portugueses também. Mas não podemos mudar a história. Podemos apenas fazer os possíveis para que ela não se repita.

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