“É preciso reacender as Luzes!”

A que se deve a fragilidade que hoje paradoxalmente revela a democracia liberal triunfante, os seus valores e as suas realizações, designadamente a construção europeia?

A diferença não é entre revolução e conservadorismo. É entre totalitários e libertários.
G. Orwell

Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
(...)
J’ écris ton nom
Paul Éluard

Orwell foi ao fundo da questão. A divisão é de facto entre liberalismo e totalitarismo, iliberalismo. Do lado liberal, a esquerda e a direita liberais. Do lado totalitário iliberal, os cambiantes fascistas e os comunistas, designadamente o leninista-estalinista e o trotskista, que sendo o mesmo se foi apresentando, tal como outros grupos dissidentes, como uma radicalização daquele, adoptando ou adoptando-se a designação “extrema-esquerda” ou “esquerda-radical” para os distinguir. Designação que do lado dos fascismos terá o seu equivalente designativo na expressão “extrema-direita”.

O passado e o projecto históricos sinistros a que também a extrema-esquerda trotskista está ligada parece terem levado agora os trotskistas a recusar o nome justamente ignominioso de “extrema-esquerda”.

Trocaram-no por “esquerda radical” [1] (?!), mas não designa a mesma coisa? E tê-lo-ão trocado por alimentarem hoje a ilusão de poderem chegar ao poder pelo voto e não agora pela revolução? Terá sido por isso que também aparentam ter-se convertido à democracia liberal? A que sempre chamaram burguesa, tendo feito tudo para que não funcionasse? Justifica-se a interrogação. 

E será por razão de cosmética idêntica que assistimos à troca de “nacionalismo” – nome ligado à hecatombe que os totalitarismos promoveram no século XX – por “soberanismo”? Nacionalismo, note-se, que está na genética comum dos iliberalismos. 

A divisão liberalismo/democracia versus iliberalismo/totalitarismo remete para Hegel e Marx. Ela deriva de um começo de pensamento filosófico, surgido num determinado momento histórico – o da Revolução Francesa –, que Francis Fukuyama trata com brilho no “Posfácio” à edição de 2019 [2] de O Fim da História.

Cito: “Hegel foi o primeiro filósofo historicista que percebeu a história humana como um processo evolutivo coerente. Viu esta evolução como o desdobramento gradual da razão humana, que acabaria por conduzir à expansão da liberdade no mundo.” 

A teoria de Marx assentava pelo contrário na economia, levando a que durante o período da publicação do Manifesto Comunista, em 1848, e até ao fim do século XX, muitos intelectuais acreditassem na profecia de que haveria um fim da história e o processo histórico terminaria, não na universalização da liberdade, mas na utopia comunista. 

Mas como bem refere Fukuyama, “se o processo histórico ia de facto nalgum sentido, não era do comunismo, mas do que os marxistas chamam democracia burguesa”. De facto, não viria a configurar-se forma mais elevada de sociedade do que a que assenta nos dois princípios iluministas liberais: a liberdade e a igualdade.

Alexandre Kojève – lembra Fukuyama –, o grande hegeliano francês de origem russa, “apresentou esta ideia de uma forma provocadora quando disse que a história acabou em 1806, o ano em que Napoleão derrotou a monarquia prussiana na batalha de Jena-Auerstadt, levando com isso os princípios da Revolução Francesa ao canto da Alemanha de onde vinha Hegel”. O que se verificou depois foi a generalização planetária desses princípios iluministas. O liberalismo trouxe um desenvolvimento inimaginável, verificando-se ser mais fácil a consolidação da democracia com níveis relativamente altos de rendimento per capita

Como nos seus livros Steven Pinker [3] tem documentado, todos os indicadores e dados estatísticos confirmam que a prosperidade, o progresso, são factos incontestáveis. E que se devem ao liberalismo. A pobreza no mundo está em queda acentuada. Metade da população humana é hoje da classe média. O analfabetismo – apesar da devastação educativa das chamadas “novas pedagogias” – recua. As doenças recuam. A segurança nunca foi tão grande como hoje, apesar dos atentados terroristas. A paz, nunca houve como hoje, com os conflitos armados a concentrarem-se numa zona que se estende da Nigéria ao Paquistão, com menos de um sexto da população, todos ligados ao islamismo, com raras excepções. Mesmo no aquecimento global, um dos desafios que tem de continuar a preocupar o mundo, a situação não cessou de melhorar. (O aquecimento não é um problema do capitalismo, note-se. As emissões de gás mais fortes vinham dos países comunistas, da URSS e da China de Mao – o Grande Salto em Frente gerou enormes emissões de carbono para zero de benefício económico. E a China do mercado regulado de hoje está como nenhum outro país a enfrentá-lo e a vencê-lo.) 

A extrema-esquerda e a extrema-direita – que não gostam do progresso, têm horror à liberdade, aversão aos factos porque não lhes avalizam a ideologia e por isso temem a ciência – recusam-se a admitir ter sido a democracia liberal que fez progredir a Humanidade. Mas foi, é História, são factos.

A que se deve então a fragilidade que hoje paradoxalmente revela a democracia liberal triunfante, os seus valores e as suas realizações, designadamente a construção europeia? De facto, a ameaça do populismo, hoje antecâmara dos totalitarismos, alastra na Europa e no mundo. “O populismo ganha eleições”, conclusão de um estudo do jornal britânico The Guardian que apurou que, hoje, um em cada quatro europeus vota num partido populista, três vezes mais eleitores do que há duas décadas. O número de europeus liderados por governos populistas passou de 12,5 milhões, em 1998, para mais de 170 milhões em 2018, espalhados por 11 países.

Populismo com que também a “extrema-esquerda” quer agora chegar ao poder e é por isso que já teorizam “um populismo de esquerda”.“Porque é que a esquerda deve ser populista”, interroga Chantal Mouffe, ideóloga da extrema-esquerda do France Insoumise e do Podemos. [4] 

Mas que prometem hoje os iliberalismos, a extrema-esquerda e a extrema-direita, à Humanidade, cem anos depois do horror totalitário que nunca reconheceram nem do qual nunca se desligaram? Qual é o seu programa, o objectivo, o desígnio, o projecto de sociedade, a mundivisão que oferecem? Conhece-se a consequência dos totalitarismos do século XX: milhões de vítimas. Com o mesmo sectarismo, a mesma ideologia anti-razão, nacionalistas, anti-universalistas e anti-humanistas, o mesmo discurso de intolerância, o que trariam ao mundo seria o que trouxeram antes: opressão, guerra, miséria, um mundo de escombros.

Pelo contrário, ideal aberto à correcção e ao aprofundamento racional, a democracia liberal enfrentará na liberdade o que a fragiliza. Humanista e universalista, prosseguirá o caminho de prosperidade e progresso humano que trouxe ao mundo. Qual fénix renascida, vencerá de novo os totalitarismos. Como escreveu Steven Pinker, “é preciso reacender as Luzes”. 

[1] Atenção, o BE não é “extrema-esquerda”, disse Catarina Martins ao Observador (Janeiro 2018), reconhecendo que essa designação “está associada a totalitarismos, a perseguição, a ódio”. “Não encontram absolutamente nada disso no BE”, afirmou. CM prefere “esquerda radical”, nomeadamente por fazer a diferença relativamente “aos partidos socialistas tradicionais, que ainda por cima com a terceira via aderiram ao liberalismo económico”, acentua. Obrigado, Doutor AC, pela paciência que está a ter pelo País!
[2] Francis Fukuyama, O Fim da História, “Posfácio” da edição de 2019, edição portuguesa da Gradiva
[3] Steven Pinker, O Iluminismo Agora Em Defesa da Razão, Ciência, Humanismo e Progresso, Editorial Presença, Novembro 2018
[4] Chantal Mouffe, Un Populisme de Gauche, Paris, 2018, edição portuguesa a publicar em Abril de 2019 pela Gradiva

Sugerir correcção
Ler 1 comentários