Toxicidade da cannabis está a aumentar. É melhor legalizá-la?

Cada vez mais utilizadores de cannabis chegam aos tratamentos com ansiedade e surtos psicóticos. A legalização pode ajudar? Os especialistas não sabem. E criticam a pressa em legislar.

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Especialistas criticam pressa em legislar sobre uso recreativo sem discussão prévia LUSA/RUNGROJ YONGRIT

Há pessoas que consomem cannabis durante anos sem efeitos adversos visíveis significativos. Mas a toxicidade da substância psicoactiva da marijuana e do haxixe tem vindo a aumentar. Em 2016, mais de metade (54%) das 2090 pessoas que procuraram tratamento pela primeira vez, em regime de ambulatório, fizeram-no por causa dos efeitos da cannabis. Chegaram, segundo os profissionais destes centros com quem o PÚBLICO falou, com quadros de ansiedade extrema, descoordenação motora, dificuldades de concentração e falhas de memória, paranóia, alucinações, delírios, ataques de pânico e, nos casos mais raros, surtos psicóticos. Que, em casos mais raros ainda – em que haja propensão genética - desembocam numa psicose esquizofrénica.

Neste quadro, de agravamento da dependência da cannabis, que sentido faz avançar para a legalização do seu uso recreativo, que vai esta quinta-feira a discussão no Parlamento, por proposta do BE e do PAN?

O fim da desaprovação social pode levar ao aumento do consumo de uma droga que já é utilizada regularmente por cerca de meio milhão de portugueses, segundo o inquérito realizado em 2016/17, pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (SICAD)? Qual o risco de a medida reforçar a generalizada convicção entre os jovens de que a substância é inócua para a saúde? Ou pode a legalização, pelo contrário, ser oportunidade para controlar os níveis de toxicidade da substância, minimizando os seus efeitos para a saúde de quem a consome?

“Não sabemos ao certo. Não há estudos que meçam o impacto de uma medida destas nem os efeitos do uso da cannabis a longo prazo”, arruma João Curto, o psiquiatra que coordena a Unidade de Desabituação da região Centro, onde os utentes são internados para tratamentos de desabituação de substâncias psicoactivas em regime de internamento. “Não estou fechado a coisa nenhuma, mas há aqui o risco de estarmos a avançar levianamente e a tornarmo-nos cúmplices de uma situação cujos efeitos não conseguimos avaliar”, alerta Emídio Abrantes, médico e coordenador do Centro de Respostas Integradas (CRI) de Aveiro, para quem Portugal não deve acelerar nesta corrida antiproibicionista sem ter estudado todos os cenários, revisto a evidência científica e escrutinado os exemplos que vêm do estrangeiro.

Se a proposta for aprovada, Portugal (que acaba de regulamentar o uso da cannabis para fins terapêuticos) junta-se ao Uruguai, a nove estados norte-americanos e ao Canadá na lista de países que permitem o uso recreativo desta substância psicoactiva. Mas, por cá, e numa altura em que a cannabis surge pelo quinto ano consecutivo como a droga mais referida por parte de quem procura tratamento, segundo o SICAD, “há riscos que estão por medir”. “Um dos riscos é o de se fazer passar a mensagem de que há drogas boas e drogas menos boas, quando sabemos que a lista dos efeitos nefastos da cannabis é enorme: além das alterações estruturais no funcionamento do cérebro, os consumidores evidenciam dificuldade em descrever as suas próprias emoções, empobrecimento da vida emocional, aumento do insucesso e do abandono escolar, maior risco de acidentes de viação e maior exposição a comportamentos sexuais de risco”, aponta Emídio Abrantes.

E, “há estudos que demonstram que o uso habitual de cannabis na adolescência leva a uma diminuição de vários pontos no Quociente de Inteligência (QI)”, acrescenta, por seu turno, João Ribeiro, clínico geral e coordenador do Centro de Respostas Integradas (CRI) de Lisboa Ocidental, que abrange os concelhos da Amadora, Sintra, Cascais e Oeiras, para onde professores e médicos encaminham cada vez mais jovens com consumos de risco de derivados da cannabis.

“Aos 17 e aos 20 anos já sentem que consomem demasiado”, descreve João Curto. “Não apresentam ressaca física mas denotam inquietação psicológica, angústia, ansiedade e sintomas depressivos, misturados com irritação, agressividade e uma tendência para o isolamento e com perda de rendimento escolar”, acrescenta o psiquiatra.

Admitindo que o aumento da procura de tratamento pode decorrer da maior eficácia dos centros de saúde e das próprias escolas na detecção e referenciação dos casos mais problemáticos, o médico aponta o aumento dos níveis de toxicidade da cannabis que hoje é comercializada no mercado ilegal. “A concentração do THC [composto responsável pelos efeitos alucinogénios da planta] anda nos 10% - às vezes chega perto dos 20% - quando antigamente falávamos de erva ou marijuana com concentrações na ordem dos 3% e 4%. O que significa que todas as funções cognitivas e do ponto de vista cerebral são muito mais afectadas.”

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Regular para diminuir toxicidade?

profusão do uso da cannabis, sobretudo na faixa etária dos 25-44 anos de idade, e a sua maior toxicidade tanto podem pesar a favor como contra a legalização. “Num mercado regulado, os componentes da cannabis podem ser manipulados para proporções que não afectem as funções das pessoas”, admite João Curto, para quem a discussão deve conjugar os efeitos na saúde individual de quem consome com o combate ao tráfico e aos interesses económicos num mercado que move muitos milhares de milhões: “A discussão não está feita, infelizmente. E deve ser feita à luz da evidência científica e estudando, nomeadamente, o que está a acontecer no Canadá, que é um pais extraordinariamente importante no mundo, até no cuidado enorme que tem tido no combate às toxicodependências.”

Nem contra nem a favor da legalização do uso recreativo da cannabis, Purificação dos Anjos, uma psicóloga que trabalha na Comissão de Dissuasão da Toxicodependência do Porto, admite que “o regime regulado pode potenciar outras abordagens de promoção de um consumo responsável, apostando no autocontrolo dos consumidores”. “Não sendo tão dolosa como a cocaína ou como a heroína, a cannabis comporta riscos consideráveis. Mas o mesmo se pode dizer do álcool, que também altera a percepção da realidade, e até há quem atribua à cannabis índices menores de nocividade do que ao álcool. Portanto, uma das questões estaria em saber se, com a regulação, aumentaria o número de consumidores. E aí os dados são contraditórios”.

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Todos contra autocultivo

Entre os profissionais do sector há duas certezas que dispensam mais estudos científicos: a primeira é que todos se opõem ao autocultivo. “Isso é impossível de ser fiscalizado”, diz João Curto. “É fantasioso pensar-se que aí seria possível algum tipo de fiscalização”, concorda Emídio Abrantes. A segunda certeza é que a venda deve permanecer interdita aos menores de 18 anos. “Aí seria taxativamente contra”, enuncia João Ribeiro. “As restrições ao uso pelos menores de idade e a não-promoção do consumo são fundamentais”, confirma Purificação dos Anjos.

E quanto aos efeitos da cannabis na condução? As propostas do BE e do PAN que esta quinta-feira são debatidas, numa discussão que não se prevê muito acesa, já que, quase à mesma hora, os deputados do PSD têm a reunião do conselho nacional em que vai discutir-se uma moção de confiança à direcção, são omissas quanto a isto. “A literatura descreve que o consumo de cannabis diminui as capacidades relacionadas com a condução, mas continuamos sem saber como é que estas alterações aumentam o risco de acidentes”, afirma Emídio Abrantes. O Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência publicou, em Maio de 2018, um índice de perguntas e respostas sobre a cannabis e a condução. O documento aponta os valores limite para a concentração de THC no sangue vigentes nalguns países (variam entre os 1 e os 9 nanogramas por cada mililitro de sangue – ng/ml).

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Nos EUA, por exemplo, definiu-se uma concentração de 5 ng/ml como elemento de prova de diminuição das capacidades ao volante, enquanto o Reino Unido adoptou um nível de 2 ng/ml. E em Portugal? Não existe. O que há é um estudo de 2017, citado no referido índice, que estimou que, se a concentração fosse de 1 ng/ml, 67% dos condutores teriam sido acusados; se fosse de 3 ng/ml, a percentagem seria apenas de 26%.

“Tudo isto deveria estar pensado antes de avançarmos com esta pressa toda para a legalização”, insiste Emídio Abrantes, para questionar, à laia de conclusão: “Antes de legalizar, o Estado não devia garantir que consegue dar resposta aos actuais problemas relacionados com o uso abusivo destas substâncias? É que não está a dar. E, mais do discutir a regulação da cannabis com esta pressa toda, essa devia ser a sua preocupação”.

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