Sophia, cem anos depois: uma figura exemplar de poeta

Colectâneas da sua prosa de ficção e de textos dispersos e uma reedição de O Nu na Antiguidade Clássica são algumas das edições que marcarão o centenário da autora que melhor encarnou o ideal de poeta no século XX português.

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Daniel Rocha

Um espectáculo de dança inspirado no conto O Cavaleiro da Dinamarca inaugura este sábado, no Centro Cultural de Belém, as comemorações do centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), uma iniciativa idealizada pela sua filha Maria Andresen Sousa Tavares, também poeta e artista plástica, e coordenada a partir do Centro Nacional de Cultura, instituição à qual Sophia esteve sempre muito ligada, antes e depois do 25 de Abril.

Da programação já anunciada, destaca-se uma sucessão de colóquios e ciclos de conferências que se iniciará em Maio na Gulbenkian, em Lisboa, prosseguirá no mês seguinte com um encontro internacional em Roma (onde se pediu a cada convidado que indicasse um jovem investigador para participar), rumará depois ao Rio de Janeiro, com um grande colóquio de quatro dias que assinalará simultaneamente os centenários de Sophia e Jorge de Sena (1919-1978), passará ainda em Lagos, onde os trabalhos se organizarão em torno de mesas-redondas temáticas, e terminará no Porto, em Novembro e Dezembro, onde se indagará a relação de Sophia com a música, a dança e outras artes.

Mas este ano do centenário trará também um programa de edições importante, já antecipado no Brasil, onde acaba de ser lançada a obra poética de Sophia num volume de mais de mil páginas com a chancela da Tinta-da-China. Em Portugal, a Assírio & Alvim, do grupo Porto Editora, irá publicar um volume com a prosa de ficção da autora, coordenado por Carlos Mendes de Sousa. A organização do volume ainda não está fechada, mas incluirá certamente os Contos Exemplares (1962), as Histórias da Terra e do Mar (1984), os seus textos para crianças, e o teatro, com O Bojador (1961) e O Colar (2001). O organizador acha que faria ainda sentido juntar-lhes O Nu na Antiguidade Clássica, originalmente inserido, em 1975, no volume O Nu e a Arte, dos Estúdios Cor, e cuja última edição, na Caminho, é de 1992 e está há muito esgotada.

Este livro terá já em Março uma nova edição autónoma na Assírio & Alvim, com prefácio do clacissista José Pedro Serra e coordenação e notas de Maria Andresen Sousa Tavares, que decidiu somar-lhe uma antologia dos poemas de Sophia relacionados com o mundo clássico. “São textos que dão uma imagem da inquietação da minha mãe com as coisas gregas e achei que precisavam de se ancorar nos poemas que ela fez a partir da sua ida à Grécia”, diz a filha de Sophia, que assinala a hibridez deste trabalho – “não é história de arte, não é ensaio, não são poemas” –, mas sublinha a “estrutura intimamente poética” do conjunto. “São textos poéticos, ao mesmo título das suas artes poéticas”, argumenta, referindo-se ao notável conjunto de poemas em prosa nos quais Sophia sintetiza a sua concepção da poesia e as origens e evolução do seu próprio percurso como poeta.

Na Assírio & Alvim deverá ainda sair uma edição com os textos dispersos de Sophia, que completará, com as compilações da poesia e da prosa, a reunião de quase toda a sua obra em apenas três volumes. A organização dos dispersos está a ser preparada pelo investigador italiano Federico Bertolazzi, que integra também a comissão coordenadora destas comemorações, a par de Fernando Cabral Martins, Guilherme d'Oliveira Martins, José Manuel dos Santos e a própria Maria Andresen.

Também já confirmado está o lançamento, pela Valentim de Carvalho, com o acordo da Porto Editora, de uma edição que juntará o CD A Menina do Mar, com voz de Eunice Muñoz e música de Fernando Lopes Graça, ao próprio texto do conto de Sophia. E o responsável da Valentim de Carvalho, Rui Portulez, está ainda a preparar uma “edição especial comemorativa” que deverá incluir um DVD com “um espectáculo gravado ao vivo”, mas, como esta está ainda em negociações, prefere não adiantar detalhes. 

A maçã sobre a mesa

A dimensão deste programa de comemorações deve muito ao esforço de Maria Andresen Sousa Tavares, como nota Carlos Mendes de Sousa, que chama a atenção para o comparativo silêncio que vem rodeando o centenário, que se cumpre também este ano, de “um autor com uma obra tão extraordinária e diversificada como Jorge de Sena”. E a própria filha de Sophia, mandatada pela mãe para cuidar da sua obra, reconhece que “faz diferença quando os poetas têm alguma pessoa, geralmente um familiar, que se interessa”, e dá o exemplo de Ruy Cinatti (1915-1986), que terá sido uma das primeiras influências de Sophia como “um poeta enorme, mas que não teve filhos ou amigos que ajudassem a manter o interesse na obra”.

Mas a aparente facilidade com que se reuniram apoios institucionais e colaborações muito diversas é também sinal do prestígio e do afecto de que Sophia sempre gozou na sociedade portuguesa, muito para além do círculo de leitores mais ou menos especializados, e que já justificara a sua trasladação para o Panteão Nacional em 2014.

Um reconhecimento ao qual não serão alheias “a intervenção política de Sophia e a sua identificação com o 25 de Abril”, sugere o ensaísta Pedro Eiras, para quem, no entanto, o que a torna um caso muitíssimo singular “é o modo como consegue conciliar um acontecimento político como o 25 de Abril com uma matriz muito antiga e conjugar esses tempos, estando plenamente no século XX e ao mesmo tempo na Grécia antiga”. Sophia, diz, “é uma poetisa portuguesa, mas é também uma poetisa grega de há dois ou três mil anos, e é também isso que a torna tão universal”

Mesmo no plano mais estrito do seu reconhecimento pelos historiadores literários, pelos críticos especializados e pelos seus próprios pares, Sophia constitui um caso raríssimo de persistente consenso, que começou a formar-se muito cedo, que hoje, década e meia após a sua morte, não dá quaisquer sinais de estar a enfraquecer, e que abrangeu e abrange todas as correntes e autores tão diversos como Eugénio de Andrade ou Herberto Helder, Gastão Cruz ou Joaquim Manuel Magalhães, ou mais recentemente Adília Lopes, cuja poesia está encharcada de referências à autora de Coral (1950), Livro Sexto (1962) Geografia (1967) ou Ilhas (1989). E entre os quase todos que, num momento ou noutro, lhe prestaram público sinal da sua admiração conta-se ainda, claro, Jorge de Sena, que na nota de apresentação que lhe dedica nas Líricas Portuguesas sublinha a sua “nobreza de dicção”, “irmã da majestade subtil de Pascoaes e das grandes odes de Álvaro de Campos, cuja linhagem continua”.

É possível que mesmo os autores mais racionalistas ou cépticos não consigam ser inteiramente insensíveis ao mito romântico do poeta absoluto, heróico, intérprete do sagrado e fundador do que perdura, e isso ajude também a explicar a generalizada sedução exercida por esta improvável irmã de Homero e Hölderlin nascida no Portugal do século XX. Mas Pedro Eiras precisa que essa ideia de Sophia como um poeta exemplar tocado pela graça não deve fazer-nos esquecer que “essa graça é linguagem”.

Evocando a célebre maçã sobre a mesa que Sophia recorda em Arte Poética III como “a coisa mais antiga” de que se lembra, e com a qual teria descoberto “a própria presença do real”, Eiras argumenta: “A maçã está mesmo lá a existir enquanto maçã, e a graça pode ser isto, as coisas serem o que são, sem porquê, mas o que essa maçã é para nós é linguagem.” E acrescenta: “Os gregos antigos morreram todos, o que deles temos é linguagem, é essa a sua permanência.” Assim, para Sophia, defende, o poeta “não inventa o mundo, que já lá estava, mas é responsável por o mundo ficar cá”. E exemplifica começando a dizer de cor o poema de Livro Sexto que abre com o célebre verso “O poema me levará no tempo” e que termina: “Mesmo que eu morra o poema encontrará/ Uma praia onde quebrar as suas ondas// E entre quatro paredes densas/ De funda e devorada solidão/ Alguém seu próprio ser confundirá/ Com o poema no tempo”.

Sophia, observa ainda o ensaísta, “conhece muito bem esses milénios de filosofia sobre a relação entre linguagem e coisas, mas está noutro lugar, parte de uma premissa que nunca trairá e que torna o seu percurso muito único no século XX: a de que a linguagem pode, sim, dizer a coisa”.

Também Carlos Mendes de Sousa sublinha que a obra de Sophia “tem uma unidade extraordinária”, e que se é possível rastrear “uma trajectória temporal, com datas e lugares – os jardins, a casa da Granja, o Algarve –, esses lugares são ao mesmo tempo reconhecíveis e apresentados numa espécie de tempo inteiro, um tempo sem tempo”. E estando a braços com a organização da prosa ficcional da autora, o investigador pôde agora confirmar que essa unidade abrange todos os géneros que esta praticou, e não apenas a sua poesia, pese embora a sua incontestável centralidade. Ao ler, por exemplo, A Casa do Mar, um dos cinco contos de Histórias da Terra e do Mar, deparou com “uma descrição pormenorizada, quarto a quarto, da casa da Granja, onde a dado momento aparece uma referência a uma maçã sobre a mesa”, certamente a mesma que é evocada em Arte Poética III. “Na Sophia é tudo muito unido”, resume. E também muito “vivido”, acrescenta: "Há um pequeno ensaio, Poesia e Realidade, em que ela diz que a poesia não serve para ornamentar a vida, mas para viver, e isso está nela do princípio ao fim”.

Furor no Brasil

O interesse pela obra e pela figura de Sophia parece ter também chegado definitivamente ao Brasil. Sofia de Sousa Silva, professora de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorada com uma tese que examina as relações entre as poéticas de Sophia e Adília Lopes, inventaria como um primeiro “marco” dessa atenção do Brasil à obra da poetisa portuguesa o poema que João Cabral de Melo Neto lhe endereça em A Educação pela Pedra (1966), um dos seus livros mais importantes: Elogio da usina e de Sofia de Melo Breiner. No mesmo ano em que João Cabral publica o seu elogio poético, Sophia visita o Brasil e o seu nome “começa aparecer em algumas antologias”, conta Sofia Silva. Mas só em 2004 sai uma primeira escolha da sua poesia, preparada por Vilma Arêas para a Companhia das Letras, que há cerca de um ano lançou uma nova e bastante mais extensa antologia, Coral e Outros Poemas, organizada pelo poeta Eucanaã Ferraz, que teve boa cobertura na imprensa e tem sido um sucesso de vendas.

Mas entre 2004 e 2018 a presença de Sophia no Brasil teve outros momentos fundamentais, como o lançamento por Maria Bethânia, em 2006, do CD O Mar de Sophia, ou a publicação, com a chancela da entretanto extinta Cosac Naify, de A Menina do Mar, lembra Sofia Silva.

“A situação é agora muito diferente do que era há 15 anos, quando saiu a primeira antologia: Sophia é hoje conhecida por toda a gente que gosta de poesia e há também muitas dissertações e teses de doutorado sobre ela no Brasil”, diz esta ensaísta, adiantando que “até houve alguém que fez uma tese sobre a militância anti-fascista” de Sophia.

Na sua tese, explica, interessou-lhe “perceber o que aproximava” Sophia e Adília. A “busca de uma poesia que tivesse uma componente de intervenção, mas sem um programa político prévio”, foi uma das afinidades que julgou detectar. “E depois existe um trabalho que a poesia da Sophia faz e que pode ter interessado a Adília, que é o modo como ela usa palavras que parecem gastas, que já não querem dizer nada, e apenas com pequenas alterações faz com que recuperem o seu brilho”, diz. E dá um belo exemplo. Numa dedicatória manuscrita deixada num livro, Sophia escreve “Para Helena Lanari no dia em que vimos o Cabo Frio, que foi um dia maravilhoso”. "Cabo Frio é uma cidade litorânea no Rio de Janeiro", nota Sofia Silva, "mas para nós o seu nome é apenas um topónimo, já não pensamos que é um cabo onde passa uma corrente marítima fria, e Sophia, ao escrever 'no dia em que vimos', e não 'no dia em que fomos a', recupera o acidente geográfico”.

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