O Estado levou ao Panteão a Sophia que nunca foi uma figura de regime

Com a presença de poucos populares, Sophia de Mello Breyner Andresen é a décima primeira figura nacional a ser sepultada na Igreja de Santa Engrácia.

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Enric Vives-Rubio

À saída da Capela do Rato, em Lisboa, às seis da tarde, não estavam muitas pessoas para receber Sophia de Mello Breyner Andresen, que saía dali para Panteão Nacional, onde fica agora por decisão unânime da Assembleia da República, em Fevereiro. Uma charrete com flores brancas esperava pela saída da urna coberta pela bandeira nacional e algumas pessoas foram parando curiosas com o aparato: batedores, carros oficiais e guarda de honra da Guarda Nacional Republicana (GNR), fotógrafos e câmaras de televisão par acompanhar a poeta.

Quando a urna sai da capela, onde decorreu uma cerimónia privada dirigida pelo patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e pelo padre e poeta Tolentino de Mendonça, então alguém se apercebe do que se passa e corre entre os transeuntes o nome de Sophia. Depois de passar o carro puxado a cavalos da GNR toda a gente dispersa, o que voltaria a acontecer mais tarde, no pátio exterior do Panteão Nacional durante a cerimónia com honras de Estado em que Cavaco Silva, Assunção Esteves e Pedro Passos Coelho assinaram o Termo de Sepultura.

Na homília privada onde estiveram presentes os familiares e figuras como o ensaísta Eduardo Lourenço, a ex-deputada Maria Barroso Soares, o presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Artur Santos Silva, ou o advogado José Miguel Júdice, o tema escolhido por Manuel Clemente foi “a pureza de coração”. Sophia de Mello Breyner “unia muito bem a aspiração religiosa com a consciência política”, disse aos jornalistas o patriarca, lembrando as vigílias contra a ditadura e a guerra colonial em que a poeta participou em 1972, promovidas por um grupo de católicos progressistas de que fazia parte.

“A Sophia tem uma poética da luz e da transparência”, disse à saída desta cerimónia Tolentino de Mendonça, acrescentando que esta entrada no Panteão frisa que “não há povo sem cultura” e a que a poesia é desde sempre “uma das formas de arte mais persistentes e de todos, o que Sophia de Mello Breyner protagoniza”.

Este lado de inconformismo e de universalidade da poeta, cuja morte fez ontem dez anos, foi lembrado por diversas vezes já na cerimónia no Panteão, às sete da tarde, onde estiveram presentes filhos e netos e as mais altas figuras de Estado,  assim como representantes de todos os partidos com assento parlamentar.

Perto do pátio reservado aos convidados, algumas dezenas de pessoas foram parando e assistindo aos discursos de Cavaco Silva, Assunção Esteves e o escritor José Manuel dos Santos, que lançou a ideia desta trasladação num artigo assinado no PÚBLICO em 2013.

Na cerimónia, o escritor lembrou a poeta como “a voz” que ainda hoje “diz o que é preciso ser dito”, num tempo que, como o era o de Sophia, é “um tempo subjugado e entregue à ameaça”. Palavras que continuam ainda hoje necessárias, disse José Manuel dos Santos, antes de citar Sophia: “Não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da dignidade do ser”.

O génio literário de Sophia de Mello Breyner foi sempre referido, dando-se destaque à sua “cidadania exemplar”, como disse Cavaco, e à sua presença nos principais momentos da democracia portuguesa: “Vemo-la em Abril, celebrando o dia inicial do 'acordo livre e justo'. Vemo-la à porta de Caxias, cravos na mão mais certa entre todas as mãos. Vemo-la no Parlamento, protagonista da nossa Constituição fundadora”, lembrou Assunção Esteves.

Ramalho Eanes, antigo presidente da República, destacou aos jornalistas a ideia de “dignidade essencial do Homem” que Sophia defendia. “Ela di-lo de uma maneira extremamente bonita em verso, mas fá-lo na vida através da acção cívica e politica, através da relação quotidiana com as pessoas”, disse.

Guilherme de Oliveira Martins, presidente do Tibunal de Contas, não esquece “a participação de Sophia na Assembleia Constituinte, a trabalhar em temas fundamentais como a cultura, a defesa do património, mas também a educação para todos”. Oliveira Martins, que é presidente do Centro Nacional de Cultura, sucedendo à poeta que também ocupou este cargo, disse ainda que “a presença nas escolas da obra de Sophia é algo de fundamental”.

Na cerimónia, os discursos foram intervalados pela actuação da Companhia Nacional de Bailado – executou duetos do Lago dos Cisnes e de Orpheu e Eurídice –, pelo Coro do Teatro Nacional São Carlos que cantou o Magnificat de Bach e por uma gravação de 1957 em que a poeta lê poemas como Dia ou Soneto à Maneira de Camões. Nos três discursos, citou-se a mesma frase de Sophia: “Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo”.

“Fez da sua memória um símbolo colectivo, mas nunca foi uma figura de regime”, disse José Manuel dos Santos, para quem “a poesia de Sophia torna impossível a sua apropriação” – o que parece rimar com a imagem da Bandeira Nacional a esvoaçar com o vento por várias vezes à porta do Panteão e a revelar uma urna lisa e simples. 

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