Pensar

As anestesias sociais (e políticas) levam as ratazanas a sair dos esgotos e a peste vem com elas. Não digam que não viram. Um dia saltarão para o nosso colo!

A Justiça é um valor fundamental que exige várias concretizações e obviamente inclui princípios éticos estruturantes que, claro, se acham na base da sua mais relevante expressão, o Direito. No entanto, a Justiça não se confunde com o Direito, que antes deve ser o resultado da sua aplicação. Desde Aristóteles e Platão que a Justiça e o Direito são filosoficamente, numa ótica de pensamento sistémico, conceitos diferentes, embora interdependentes.

Tal como eu penso, ou o Direito se conforma com a Justiça ou não. Por isso não basta, para assegurar tal conformidade, um Direito segregado por um qualquer poder legitimado apenas, insisto, apenas legitimado pelo voto, sem o exercício quotidiano democrático, à luz de princípios de Justiça.

Muitos ditadores foram eleitos por voto popular. Isso não os transformou em democratas, como é evidente, e a pretensa legalidade que deles brotou não obedeceu, nem jamais obedecerá, a princípios mínimos de Justiça material (e menos ainda de liberdade). Além do mais, devo dizer, tenho um verdadeiro horror a salvadores da pátria, conquistadores e quejandos (leiam-se semelhantes). O condicionamento da Justiça e dos media torna-se apetecível.

Fiz, há anos, uma intervenção na qual me referi ao ovo da serpente e também citei A Peste de Camus. Vi olhares interrogativos em meu redor. Pois bem, referia-me então ao que agora se torna cada vez mais evidente: populismos, radicalismos, totalitarismos, intolerâncias. Há anos que todos os condimentos estavam lá.

Basta olhar, por exemplo, para quem cantou as Primaveras Árabes. Era preciso conhecer a História de toda aquela área do globo e ter meditado sobre o que estava organizado por detrás de tudo aquilo, que tão justo pareceria. E ao que conduziria. Não tinha havido tempo para a constituição de partidos e alternativas democráticas.

Muitos queixam-se agora de populismos. Não entenderam? Não sabiam? Por vezes, a ignorância é precipitada e atrevida.

Não se avaliam destinos de povos, sem legitimidade para isso e sem conhecer a sua História. Na realidade, o que vem à tona são de novo jogos de interesses, como sempre, especialmente em áreas ricas em matérias-primas básicas. Tanta necessidade de Justiça, pilar essencial de uma vida democrática!

A tentativa do retrocesso no Judiciário é para mim óbvia. Essa tentativa de condicionamento do poder judicial está em andamento! Era claro que este novo ciclo em Portugal – e não só – apoucaria de forma mais ou menos subtil a Justiça, o Direito, os seus agentes. E havia pessoas incómodas, como tantas vezes referi, para interesses instalados.

Pese a mudança de cultura – reforço da independência, especialização e profissionalização da gestão dos tribunais, a par de autonomia e escrutínio pelos cidadãos, através dos conselhos consultivos das comarcas –, havia almas a quem muito apetecia fazer regredir a liberdade do Judiciário. Cometem-se erros, claro, como em tudo o que tem mão humana.

Para mim, alguns dos que se afastaram por motivos evidentes ou foram afastados, teriam de ser os primeiros a sair. Incómodos?

Talvez reste ainda meter uma mão na instrução criminal e sobre ela lançar uma campanha negra. Pobre micro História da Humanidade, tão maltratada ao longo de gerações (incluindo a atual)!

É certo que, com exceções, porque há quem lute e resista, como sempre, perante uma sociedade anestesiada, que prefere ficar agarrada aos seus tablets, aos seus telemóveis, mergulhada nas redes sociais, olhando como mera espectadora para os factos, ou melhor, para as narrativas tantas vezes falsas e tendenciosas que naquelas desfilam. Contempla-se a espuma dos dias, confinada ao imediato, sem qualquer preocupação de pensar a médio e longo prazo.

As anestesias sociais (e políticas) levam as ratazanas a sair dos esgotos e, como se sabe, a peste vem com elas. Não digam que não viram. Um dia saltarão para o nosso colo!

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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