Alzheimer: O manifesto ético contra o fatalismo

Existem aproximadamente 4,5 milhões de pessoas com a doença de Alzheimer e, em 2050, espera-se que esse número triplique. A incidência desta doença duplica a cada cinco anos.

Ao refletir nas questões éticas no cuidado da pessoa com Alzheimer, dei por mim a pensar que a Ética é semelhante à sonoridade do triângulo na Barcarolle, executado pela Johann Strauss Orchestra e dirigida por André Rieu.

Mesmo sem prestar muita atenção, quando ouvimos esta icónica melodia, ficamos despertos para o som que marca o compasso. Depois da entrada dos nobres instrumentos de sopro e de cordas, surge a singeleza de um som do triângulo que, desconcertante, invade a sonoridade majestosa dos grandes grupos de instrumentos. Este intruso, tal como a ética na orquestra da ciência, em vez de fazer ruído, envolve cada um dos instrumentos de uma harmonia que faz desta um ícone popular da música clássica.

Existem aproximadamente 4,5 milhões de pessoas com a doença de Alzheimer e, em 2050, espera-se que esse número triplique. A incidência desta doença duplica a cada cinco anos, após os 65 anos. Assim, quase 50% das pessoas podem ser afetadas pela doença aos 85 anos.

Estes dados da doença são acompanhados por uma tremenda frustração no avanço da investigação em novos fármacos, uma vez que apenas 2% dos novos medicamentos testados em laboratório chegam às prateleiras das farmácias.

Assim, o medo e incerteza invadem discursos cada vez mais utópicos ou derrotistas. É urgente uma sabedoria prática que coloque o centro das nossas preocupações na pessoa doente com Alzheimer.

A personalização, ou “pessoalização” real do cuidado, deve começar por ter em conta os estádios inicial, intermédio e final da doença. Cada um destes momentos tem questões éticas muito específicas que devemos ter em conta.

Os desafios que nos são colocados no início da doença de Alzheimer envolvem a questão do respeito pela dignidade da pessoa com Alzheimer. De entre as questões fundamentais estão os critérios de encaminhamento destas pessoas doentes para testes diagnósticos inovadores, como a triagem genética e a discussão sobre prognósticos maus e as diretivas antecipadas.

Colocam-se, então, duas questões: a do acesso dos doentes a um tipo de rastreio inovador disponibilizado a todos as pessoas doentes em fase de diagnóstico, em todas as regiões do país; e a questão das falsas promessas que vão desde da promessa do fim da doença em poucos anos, ao anúncio de técnicas inovadores mais ou menos fantasiosas apregoadas pelas medicinas ditas alternativas. 

Apesar do avanço na possibilidade de diagnosticar doenças numa fase pré-sintomática, a dificuldade de diagnóstico pode resultar em falsos positivos e falsos negativos extremamente prejudiciais. Resultados falsos positivos podem levar os pacientes a experimentar uma situação que não se confirma. Por seu lado, os resultados falso-negativos podem levar a um retardamento do processo terapêutico.

A acompanhar este desafio está a discussão sobre se os profissionais devem oferecer abertamente a todos os seus pacientes a opção de não prosseguir o diagnóstico, num clima sereno, sem pressões do tipo que denotam que a decisão não é da pessoa doente, mas do seu entorno.

É, por isso, premente uma política de acesso equitativo condizente com a dignidade da pessoa. Esta política nunca será tangível enquanto as pessoas doentes do interior do país ou com mais idade não tiverem o mesmo acesso aos cuidados de saúde que as pessoas doentes do litoral ou os mais jovens. Os “chaços” em medicina não podem ser as pessoas, mas os meios inadequados no cuidado das pessoas doentes.

Os desafios éticos que ocorrem nos estádios intermediários e posteriores da doença envolvem principalmente conflitos entre os valores de respeitar a autonomia do paciente, o paternalismo médico e o privilégio terapêutico. O acompanhamento das pessoas com Alzheimer não pode ser desvinculado da evolução da doença e das expectativas do controle sintomático e da regressão da doença.

No que diz respeito ao fim de vida, surge o grito lancinante das questões sobre até que ponto todos os esforços devem ser realizados para tentar com que estas pessoas doentes vivam para além de o bater ritmado do coração. À medida que a condição da pessoa com Alzheimer se deteriora, verifica-se um forte stress emocional. Este stress não é apenas reservado à pessoa doente, mas também se alastra aos seus familiares, aos profissionais de saúde e aos seus cuidadores. Com o tempo, pressupomos que as pessoas com Alzheimer perdem a capacidade de tomar decisões de forma independente e, por isso, procuramos afanosamente alguém que o possa substituir na decisão. Contra a voracidade deste pressuposto, é necessário que que a aliança terapêutica, a estabelecer entre os profissionais de saúde, a pessoa doente e os seus cuidadores, ajude a descobrir formas de resposta emocional que beneficiam o doente, mesmo que não sejam formalmente consensuais.

Idealmente, a pessoa doente com Alzheimer deverá ser abordada no contexto das diretivas antecipadas. No entanto, e mesmo assim, ainda há questões éticas fundamentais: por exemplo, quando o profissional de saúde e a pessoa doente discutem as diretivas antecipadas, a pessoa doente não imagina com precisão como seria ser alimentado de maneira artificial. Se a pessoa doente, ou os seus familiares, não puderem imaginar o que isso representa, como podemos avaliar eticamente essa declaração antecipada?

Desta reflexão podemos concluir que a questão ética dança ao som de uma visão holística que, tal como na Barcarolle, harmoniza todos os intervenientes e promove a qualidade dos cuidados devidos a todas as pessoas.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários