Devem ser os deputados a aprovar vacinas? Decisão é polémica

Especialistas ouvidos pelo PÚBLICO afirmam que vacinas são seguras e eficazes, mas alguns criticam o facto de a decisão de mexer no Programa Nacional de Vacinação ter sido tomada no Parlamento e não pelos técnicos que estudam estas matérias.

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Rui Gaudêncio

O Parlamento aprovou nesta terça-feira, com os votos contra do PS e a abstenção do CDS, a proposta do PCP que introduz no Programa Nacional de Vacinação (PNV) as vacinas contra o rotavírus, que é responsável por gastroenterites, e contra a meningite B, actualmente dada gratuitamente a crianças em situações clínicas muito graves. Para além disso, alargou a vacina contra o Papiloma Vírus Humano (HPV) aos rapazes. Esta já faz parte do PNV, só que apenas para as raparigas. Mas são os deputados as pessoas mais indicadas para aprovar vacinas?

Se ninguém coloca em causa a eficácia e a segurança das mesmas, nem todos os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO estão de acordo quanto a quem deve tomar este tipo de decisões. “De uma forma geral entendemos que melhorar a cobertura vacinal é algo positivo. Não está em causa a bondade da decisão, agora deve ser tomada sob proposta de quem tem os dados científicos. Deve ser suportada por uma comissão técnica de vacinação, que é um órgão que existe”, afirmou Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.

Para o médico “estas são questões técnicas, que têm de ser suportadas do ponto de vista técnico”. “Depois, o decisor, seja o Parlamento ou Governo, pode implementar as recomendações emitidas pela comissão técnica de vacinação. Parece-nos um precedente perigoso substituir o que é técnico por aquilo que é político”, salientou.

Não é a primeira vez que o facto de os deputados pretenderem decidir sobre fármacos dá origem a polémica. Em Outubro, o Parlamento debateu (e acabou por chumbar) uma proposta do PAN que pretendia evitar o alegado consumo abusivo de medicamentos para a hiperactividade, como a Ritalina, proibindo a sua prescrição pelos médicos a menores de seis anos. O psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Pedro Afonso, foi uma das vozes que contestou a iniciativa: “Está aqui a abrir-se um precedente perigoso, o do poder político se meter no acto médico.”

Nesta quarta-feira, o bastonário dos médicos foi igualmente muito crítico quanto à forma como a decisão de alterar o PNV foi tomada. "Acho que é uma má decisão da Assembleia da República, por ser feita sem ouvir a Direcção-Geral da Saúde, e é uma falta de respeito pelos profissionais de saúde e pela própria Direcção-Geral da Saúde", afirmou Miguel Guimarães, sublinhando que "é fundamental que todas as vacinas do PNV tenham uma análise e um acordo baseado na evidência científica".

DGS não recomendou universalização

Citada pela RTP, a ministra da Saúde sublinhou também que "cabe à Direcção-Geral da Saúde (DGS) e à comissão técnica [que a integra] fazer a avaliação e a recomendação” das vacinas a incluir ou não no programa nacional. “A inclusão que foi feita não foi antes preconizada pela DGS. Estamos a avaliar o sentido da redacção da norma que vai sair [do Orçamento do Estado]. Estamos a falar de três vacinas: para o rotavírus, meningite B e o HPV para os rapazes. Quanto às duas primeiras, a comissão técnica não tinha concluído pela necessidade da sua universalização”, disse Marta Temido.

Embora não façam parte do PNV, estas vacinas são recomendadas pelos pediatras por serem eficazes e seguras. Para o rotavírus existem duas disponíveis no mercado, comercializadas pela Merck Sharp & Dohme e a Smith Kline & French Portuguesa. Os esquemas vacinais variam entre as três e as duas doses e os custos totais entre os 153 os 119 euros, respectivamente.

Também para o HPV existem duas vacinas disponíveis em Portugal, com graus de protecção diferentes. São comercializadas pela Merck Sharp & Dohme e pela GlaxoSmithKline. Os valores, dependendo do número de doses e da escolha da marca, podem variar entre os 91 euros e os 436 euros. Para a meningite B, as opções também são duas, comercializadas pela GlaxoSmithKline e pela Pfizer. Dependendo do número de doses e da marca, os valores variam entre os 190 euros e os 380 euros.

“Três vacinas imprescindíveis”

É por quebrar a barreira do acesso por causa dos custos, que o pediatra Mário Cordeiro aplaude a decisão tomada pelos deputados. “Os partidos que propuseram a medida estão de parabéns, bem como os que a aprovaram. Esta medida impunha-se, não só pelos benefícios de saúde pública que tem, mas também pela diminuição das desigualdades sociais.”

Para o médico, que já fez parte da comissão técnica de vacinação, “estas três vacinas são imprescindíveis”. “Esta foi uma coisa boa que os deputados fizeram, ainda mais que, com o concurso público internacional [obrigatório quando a DGS faz aquisição], as vacinas ficam a um terço do preço de venda ao público. Como pediatra, acho que a comissão técnica já se devia ter prenunciado. A vacina contra a meningite B devia ser universal e ainda bem que os deputados não estiveram à espera da decisão”, afirmou, lembrando que o desígnio do PNV é garantir uma cobertura universal da vacinação.

Questionado sobre o facto de a decisão ter sido tomada no Parlamento, Mário Cordeiro não partilha das posições demonstradas por outros médicos. “Propuseram porque outros países na Europa, com epidemiologia igual à nossa, como o Reino Unido, têm vindo a tomar esta opção e existem vários órgãos e comissões de pediatria que aconselham. É uma medida que tem base científica”, afirmou, lamentando que o PS tenha votado contra.

No início deste ano, a comissão de vacinas da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) fez uma actualização das suas recomendações sobre as vacinas não contempladas PNV. E aconselha as crianças a fazer as três agora aprovadas.

“O que a SPP tem dito é que se justifica a vacinação a todas as crianças a título individual. As vacinas são seguras e eficazes e a quem as pode comprar, recomendamos que o faça”, disse Luís Varandas, pediatra e coordenador da comissão de vacinas da SPP. Diz que está “satisfeito" com a decisão do Parlamento, "até por uma questão de equidade”.

Luís Varandas admitiu contudo que seria mais difícil recomendar a introdução destas vacinas no PNV "porque não está em causa apenas a segurança e a efectividade" das mesmas. “Está também o custo que isso representa para o Ministério da Saúde. Esse habitualmente precisa de um estudo um pouco mais elaborado para se decidir que não há dúvidas" que o dinheiro que se vai gastar numa vacina compensa os resultados que se vai obter com uma universalização.

Numa opinião pessoal, Luís Varanda considerou que “o Parlamento legislou num campo que não é dele”. “Legislarem sem consultarem órgãos e comissões técnicas não fica muito bem. Isto é uma medida política. Porque fizeram isto este ano e não no ano passado? As vacinas não são novas. Acho que é uma medida eleitoralista.”

Garantir a universalidade

Não é a primeira vez o Parlamento debate a introdução de vacinas no PNV, mas tinha-o feito através de meras recomendações ao Governo e não em forma de lei. Carla Cruz, deputada do PCP, explicou que o objectivo do partido “foi melhorar a acessibilidade, garantir a universalidade e proteger a saúde da comunidade”. “Existem vários estudos científicos que mostram a importância das crianças serem vacinadas contra estas doenças e quisemos dar consequência aos estudos e dotar o PNV com mais vacinas que permitem maior imunização”, salientou.

Também o BE, o PEV e o PAN tinham propostas no mesmo sentido.

Questionada sobre se tinham contactado a comissão técnica da DGS antes de fazer a proposta de lei, Carla Cruz disse que não. “Sem prejuízo da avaliação da comissão técnica, existem vários estudos científicos que mostram a efectividade das vacinas e sustentam este alargamento”, afirmou, salientando que não está em causa a competência da comissão técnica nem nenhuma intenção de condicionar o seu trabalho. Mas também lembrou que a comissão tem estas matérias em estudo há muito tempo.

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