Graça Freitas: "Hoje um vírus dá a volta ao mundo em horas"

Aos 60 anos, é a cara da Direcção-Geral de Saúde. Confessa que o período mais complicado que viveu foi o aparecimento da pneumonia atípica e diz que a compra de vacinas e antivirais na crise da gripe A funcionou como “um seguro"

Foto
Miguel Manso

Desde que assumiu o cargo de directora-geral, Graça Freitas já enfrentou dois surtos de legionella, um surto de sarampo, um excesso de mortalidade por causa do frio e da gripe e, recentemente, uma onda de calor. Mas a médica que sucedeu a Francisco George na Direcção-Geral da Saúde (DGS) - e que é a segunda mulher a ocupar este cargo em mais de um século –  já estava habituada a lidar com emergências de saúde pública, sempre seguindo o lema “preparar para o pior e esperar o melhor”. Nascida em Angola em 1957, ainda pensou em ser agricultora e arquitecta antes de escolher Medicina. Acabou por optar por saúde pública e “herdou” o Programa Nacional de Vacinação (PNV) em 1996, ao chegar à DGS. A vacinação é a grande cruzada de Graça Freitas, que adianta que está em estudo a possibilidade de vacinar os rapazes contra infecções por vírus do papiloma humano (HPV), à semelhança do que já se faz com as raparigas, e de alargar a vacina contra a meningite B a todas as crianças. Preocupada com a mortalidade prematura e com o alto grau de dependência da população mais idosa, diz que gostaria também de “estudar e intervir sobre um grupo etário sistematicamente esquecido”, os dos adultos jovens do sexo masculino. Sobre a gripe A, sublinha que está "muito grata à natureza por termos tido uma pandemia benigna" e considera que a compra do antiviral em que gastamos 22,6 milhões de euros e foi recentemente incinerado foi uma espécie de "seguro" que o país fez. 

Nasceu em Angola. Quando é que veio para Portugal?

Vim quando quase toda a gente veio, em 1975. Comecei a faculdade em Luanda.

Por que quis ser médica? 

O meu grande sonho, como gostava muito das coisas ligadas à terra, era ser agricultora ou alguma profissão relacionada com a terra.

Foto
Miguel Manso

Porque não seguiu esse sonho?

Porque na altura não era frequente haver mulheres agricultoras nem silvicultoras nem engenheiras agrícolas e, portanto, isso era uma coisa que não fazia parte do projecto dos meus pais para mim. Já na adolescência, gostaria de ter seguido arquitectura, e, depois, a Medicina foi uma alternativa que surgiu espontaneamente.

Começou a sua formação em África. A chegada a Portugal foi um choque?

Não. Nasci em África, o meu pai era funcionário da administração pública portuguesa em Angola, a minha mãe não trabalhava na altura sem ser em casa. Era assim a nossa vida, sossegada e pacata. Fiz a minha formação escolar quase toda em África, mas tinha períodos longos de férias em Portugal. Entrei para a universidade em Luanda em 1974. Em Angola não houve serviço cívico, as universidades funcionavam, mas, com as atribulações daquele período de transição, não terminamos o primeiro ano. Regressei a Portugal e ingressei na Faculdade de Medicina em Lisboa. Foi uma transição muito pacífica.

Começou a trabalhar onde?

Em Santa Maria [hospital]. Fiz a minha formação toda em Santa Maria e depois comecei o internato geral - na altura chamava-se policlínico -, já não havia o serviço médico à periferia.

Passou ainda pelo Centro de Saúde de Ponte de Sôr?

Sim. Tínhamos dois anos de internato policlínico, oito meses dos quais eram de saúde pública fora do hospital. Santa Maria era estar em casa, era a continuidade. Foi mais drástica a mudança para Ponte de Sôr. Vinha de Santa Maria com um desconhecimento profundo do que era uma população rural. Lembro-me de na primeira consulta ter dito a uma mãe que ia introduzir alimentação diversificada ao filho para lhe dar linguado. Ela perguntou-me se lhe podia dar achigã. Eu não sabia o que era, pedi a uma enfermeira para me explicar o que era achigã, que era o peixe do rio da barragem de Montargil...

Foto
Miguel Manso

Por que escolheu saúde pública?

Estava formatada para uma carreira clínica, provavelmente hospitalar, mas todos aqueles anos foram-me mostrando outras realidades, outras formas de fazer medicina, fui lendo, conhecendo outras pessoas e, na altura de fazer uma escolha, foi uma opção, porque tinha uma nota que me permitiria ter feito outras especialidades.

Quais foram as grandes mudanças nestes mais de 30 anos?

Mudaram os grandes determinantes da saúde. Mudou muito a postura das pessoas perante a sua própria saúde. Quando eu saí de Santa Maria e fui fazer aqueles oito meses em Ponte de Sôr sem a protecção de uma cadeia hierárquica, vi-me confrontada na primeira linha com os doentes. E as pessoas na altura tinham baixo nível de participação nas decisões, eram passivas, havia pouca exigência.

As doenças transmissíveis nessa altura ainda eram uma grande causa de mortalidade?

Acabei o curso em 1980 e a tendência das doenças transmissíveis desaparecerem era já tão grande que se pensava que, com os antibióticos, os anti-inflamatórios, os anti-sépticos, sobretudo com as vacinas, a humanidade ia deixar de ser afectada por estas doenças.

O que falhou?

Falhou a nossa arrogância, o pensamento de que nós dominaríamos a natureza. Exactamente no ano em que acabo o curso - e acabo o curso já convencida de que as doenças infecciosas seriam uma coisa do passado, até porque foi o ano em que acabou a varíola e a poliomielite estava no fim -, emerge a sida.

Como é que nos vamos adaptando a estas mudanças e ao reaparecimento de doenças que pensávamos estar esquecidas?

Esse é o grande desafio da era actual, a velocidade com que tudo muda, as circunstâncias, os determinantes da saúde. O conhecimento muda também de um dia para o outro, as tecnologias mudam, aparecem novas moléculas, medicamentos, inovações terapêuticas. A velocidade a que tudo acontece é brutal.

Não é uma frustração para quem trabalha nesta área algumas pessoas não acreditarem na vacinação ou desvalorizarem a sua importância?

Quando os fenómenos acontecem pela primeira vez, há um choque. Quando se pensa, por exemplo, que o sarampo está eliminado e em vias de ser erradicado, e pela primeira vez se descobre que não, que ressurge, que há surtos, que afinal o percurso vai ser mais difícil, que há movimentos de hesitação em vacinar, aí há de facto um choque. Mas os seres humanos, os ecossistemas, têm uma grande tendência para se reorganizarem. Agora preparo-me é para minimizar os efeitos.

O seu lema, aliás, é preparar para o pior, esperar o melhor.

Exactamente. É esta capacidade de nos prepararmos e acompanharmos. O que fazemos agora é uma leitura do que nos rodeia, estamos muito atentos para detectarmos precocemente uma ameaça e intervir rapidamente. A rapidez aqui é essencial.

Desde que assumiu o cargo já passou por dois surtos de legionella,  um de sarampo, um pico de calor e um excesso de mortalidade por causa do frio e da gripe. Foram nove meses difíceis?

Antes disso tudo, lidei com um pequeno surto de varicela. Foi tão discreto que passou despercebido. Foi um problema porque aconteceu numa comunidade fechada com grávidas. E foi logo 24 horas depois de substituir o director-geral. Mas tinha já um longo percurso em emergências de saúde pública, pois cheguei à DGS em 1996. Por isso, encaro estes problemas com alguma tranquilidade.

Foi complicado suceder a Francisco George? E tenciona ficar muito tempo à frente da DGS?

Eu não lhe sucedi, isto não é uma monarquia, apesar de ele ser descendente de britânicos. Eu substituí o doutor Francisco George, primeiro em regime de substituição e depois por concurso. Portanto, não foi uma sucessão. O doutor Francisco é uma personalidade própria, distinta. Eu tenho 60 anos, portanto não vou seguramente manter-me tanto tempo no cargo [ele saiu aos 70 anos, depois de 12 anos como director-geral].

Os dois discutiam muito?

Nós somos completamente diferentes, mas estávamos de acordo nas grandes questões. O que nos diferenciava era o modo de fazer as coisas. Discutíamos às vezes, mas tínhamos uma boa regra: debatíamos a forma de abordar uma questão e depois, quando se tomava a decisão, o outro respeitava-a integralmente.

Francisco George diz que a convenceu a deixar de fumar. Foi mesmo assim?

Ele ajudou-me bastante. Fumei mais de 20 anos e o que me deixou verdadeiramente convencida de que tinha que deixar de fumar foi a rampa da Alameda Afonso Henriques. Eu usava o metro, que fica lá em baixo em Almirante Reis. De ano para ano, a dificuldade [de subir até ao edifício da DGS] era cada vez maior. Deixei de fumar com a ajuda de um medicamento que na altura era muito pouco utilizado, o Champix. O doutor Francisco tinha acompanhado algumas pessoas que já tinham tomado Champix, portanto era a pessoa que me tirava as dúvidas porque o medicamento dava efeitos secundários. 

Foto
Miguel Manso

Não estamos a ir demasiado longe na luta contra tabagismo?

Estou convicta de que as limitações dos locais onde se pode fumar acabam por levar à diminuição da quantidade de cigarros que se fumam por dia, porque as oportunidades são menores. Quando comecei a fumar, fumava-se em todo o lado, nas urgências dos hospitais, nos corredores dos hospitais, nos aviões. Nestas questões dos comportamentos, há várias posições. Eu dou como bem vindas todas as coisas que contrariem a tendência para fumar. Depois, a decisão final cabe ao indivíduo. A nossa obrigação é ajudar [quem quer deixar de fumar], para isso existem as consultas de cessação tabágica.

São em número suficiente?

Estão a aumentar. [Hoje], todos os agrupamentos de centros de saúde têm consultas de cessação tabágica. 

Os cigarros electrónicos e o tabaco aquecido foram equiparados ao tabaco tradicional...

E continuam a ser, porque todos os estudos indicam que o risco é desconhecido.

Acabamos de enfrentar uma onda de calor e verificou-se um excesso de mortalidade face ao que era habitual para esta época do ano. Nos países do Norte não há picos tão abruptos de mortalidade como nos do Sul da Europa. Porquê?

Porque nós temos variações extremas da temperatura. Há um padrão sazonal da mortalidade que se verifica sobretudo nas pessoas mais fragilizadas, mais velhas e doentes. Em anos em que há fenómenos de temperaturas extremas adversas, ondas de calor, o nosso corpo tem que fazer um esforço de termorregulação forte para mantermos a temperatura equilibrada. Se as pessoas já tiverem uma determinada idade ou se forem jovens e tiverem doenças associadas, os seus mecanismos fisiológicos de compensar agressões externas não estão tão afinados e podem descompensar morbilidades, fragilidades, como insuficiência cardíaca e renal, e elas acabam por morrer. 

A mortalidade acima do esperado não foi demasiado elevada?

Não podemos desvalorizar o impacto da mortalidade, mas temos que explicar que acontece quando há fenómenos muito extremos. Este século no Verão só se verificou mortalidade acima do que seria esperado, em comparação com anos anteriores, em 2003, 2013 e agora. A probabilidade de morrer é [actualmente] muito maior mas também melhoramos muito os cuidados de saúde. Se não tivéssemos melhorado o SNS, a probabilidade de morrer neste momento, por exemplo em comparação com 1981 [em que foi muito elevada a mortalidade na sequência de uma onda de calor], seria o dobro.

O que mudou na máquina da DGS com a sua sucessão?

O gabinete foi o que mudou mais rapidamente, trouxe um cartaz [dos 50 anos do PNV em Portugal] e o doutor Francisco George deixou-me um quadro. Senti necessidade de mudar o gabinete para o sentir como meu.

A vacinação foi sempre a sua grande paixão?

Quando trabalhava no centro de saúde da Ajuda, preocupava-me muito com a vacinação das pessoas das freguesias da Ajuda e do Restelo. Não queria ter epidemias. Era uma espécie de uma cruzada o que fazíamos para manter população vacinada. Quando me desafiaram para a DGS, em 1996, vim chefiar a divisão de combate às doenças transmissíveis, portanto herdei o maior e melhor método que existe de combater doenças transmissíveis, para além da água potável, que é a vacinação.

O PNV remonta ao tempo daquela que foi a primeira mulher à frente da DGS.

Sim, foi a doutora Maria Luísa Van Zeller que lançou o programa. Há pessoas que dizem ´tinha que ser uma mãe a lançar este programa`. Se me reformasse hoje, orgulhar-me-ia por ter conseguido, durante estes 20 e tal anos, garantir a todos os portugueses, praticamente sem interrupções, o acesso a vacinas de qualidade, eficazes e seguras. Foi uma conquista. Os programas de vacinação podem ser muito bons mas depois precisam de um sólido serviço de saúde. O PNV foi criado em 1965 mas beneficiou muito de, em 1979, ter sido criado o Serviço Nacional de Saúde [SNS]. O programa ancorou-se no SNS e passou a ser um dos grandes desígnios preventivos do SNS.

Já existem conclusões do estudo sobre o último surto de sarampo e que mostrou diferenças em relação ao que era conhecido?

Estamos a discutir essas conclusões. Vamos ter uma reunião no ECDC [Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças] em que vai ser questionada a própria definição do que é um caso de sarampo. Tivemos aquilo a que se chama sarampo modificado. Foi uma população altamente vacinada que teve a doença, mas uma doença diferente. Por isso é que os médicos mais antigos, ao contrário do que era costume, acharam que não era sarampo. Porque era uma doença completamente diferente, com uma enormíssima vantagem: estas pessoas têm uma doença muito modificada, muito ténue, com um risco quase zero de transmissão. Há um caso descrito de transmissão e algumas interrogações. Por isso há países que já questionam se, quando se tem estas formas de sarampo em pessoas que têm a vacinação completa, se deve rastrear a seguir intensivamente os contactos ou se se deve fazer logo uma espécie de triagem e deixar os contactos ficam em vigilância passiva.

Fomos os primeiros a experienciar este tipo de sarampo modificado?

Na Europa e com a nossa escala, sim. Porque somos dos países europeus com maiores taxas de vacinação com duas doses.

Estão a avaliar outras eventuais mudanças no programa nacional de vacinação, nomeadamente a introdução da vacina da meningite B?

Temos sempre todas as vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV) em análise, como as que vão surgindo no mercado farmacêutico. O trabalho da primeira reunião anual da comissão técnica é fazer essa varredura do estado da arte das vacinas e, em função disso, criamos a nossa agenda de investigação nesse ano.

Estão a pensar incluir mais alguma vacina agora ou alargar o PNV?

Neste momento estamos a estudar várias coisas, uma delas é o alargamento da vacina contra o meningococo B, porque está a ser dada [a um grupo restrito de crianças] e tem dado algumas provas. Os pediatras recomendam e fazem bem. A vacina é eficaz, é segura.

Mas é cara.

Temos aqui a questão económica e da equidade. De facto, a vacina é cara. Do ponto de vista individual, tem sempre vantagem, se é segura, se é eficaz, se tem qualidade. Agora, o que temos de perceber é que uma vacina que entra para o PNV é universal, gratuita e generalizada e é dada a milhares de pessoas todos os anos. É uma medida universal, de saúde pública, tem de haver um valor acrescentado para a sociedade. Aquilo que me interessa é que, ao vacinar uma população, altero a dinâmica da doença. Foi o que aconteceu com meningococo C, que desapareceu quase tão repentinamente que estávamos até algo receosos de que outro viesse tomar o seu lugar, mas em saúde pública esse é o impacto que se pretende: mudar a dinâmica de uma doença de forma a que esta praticamente desapareça, fique controlada e deixe de constituir um problema de saúde pública.

Estão a pensar em alargá-la, mesmo assim?

Continuamos a pensar. As vacinas não são imutáveis. A vacina contra o meningococo B é uma vacina mais difícil do que a do C, isto tem a ver com as características das bactérias. As vacinas vão sofrendo alterações. Vamos estudando e, quando o balanço entre os benefícios da vacina e o efeito da mesma se sobrepõem aos custos para a sociedade, propomos a sua introdução. Esse exercício para o meningococo B está constantemente a ser feito.  Este ano é um dos que está agenda da comissão técnica de vacinação. Como fizemos para o pneumococo, levamos muito anos a estudar e houve uma coisa muito importante: passou de sete serotipos para 10 e depois para 13 e quando passou para 13 a sua abrangência era suficiente para justificar a introdução.

E há mais na agenda para poderem entrar no PNV?

Não podemos deixar de falar na avaliação do impacto da vacinação contra as infecções por HPV em rapazes. Isso também está a ser equacionado, é muito discutível.

Mas há países que introduziram.

Há países que têm programas diferentes porque também têm realidades epidemiológicas diferentes e realidades de financiamento diferentes. Às vezes é difícil comparar os países. O HPV afecta de forma diferente mulheres e homens. Avaliamos a carga na doença nas mulheres e chegámos à conclusão que devia ser introduzida. Olhando para a carga de doença nos homens, temos de avaliar um efeito muito importante: é que as mulheres que se vacinaram não vão transmitir aqueles HPV aos seus parceiros, a própria circulação do vírus tem a ver com a dinâmica da vacinação das mulheres.

Então porquê os rapazes? É por causa do sexo oral?

Os rapazes também são afectados pelo HPV, não o são é com a mesma magnitude que as raparigas, porque o vírus afecta outro tipo de órgãos. A grande carga do HPV nas mulheres é no cancro do colo do útero, porque não há cancro do colo do útero sem HPV - é mesmo uma relação directa -, e nos rapazes há outro tipo de cancros, da cabeça e do pescoço, na cavidade oral, do pénis, do ânus, ainda que não sejam apenas atribuídos ao HPV. Quando se fazem avaliações da carga da doença, tem de ser fazer as contas aos cancros em que o risco pode ser atribuído ao HPV. Depois temos de ver o impacto da dinâmica da vacinação feminina na transmissão da doença.

Quando é que isso se conseguirá ver?

Estamos a conseguir. Vamos fazendo levantamentos, percebendo como é que estão as taxas de vacinação nas raparigas. Este ano, com novos dados e nova informação, essas contas estão a ser refeitas. Não é uma questão de economizar, mas em saúde pública tem que ser ponderado o custo-efectividade e o custo de oportunidade. Se eu gastar o dinheiro que tenho numa determinada opção, perco outra opção.

Qual foi o período mais complicado para si desde que está na DGS?

Foi o aparecimento da pneumonia atípica, a SARS, em 2003. Não sabíamos o que a provocava e, até se perceber que era um novo coronavírus, foram dias de profunda angústia. Sabemos que todos os séculos há pandemias, há mutações do vírus, tínhamos tido três pandemias no século XX e em 1997 em Hong Kong houve a célebre gripe aviária [H5N1]. Morreram bastantes pessoas em Hong Kong, depois houve o episódio do grande extermínio das galinhas, a sorte é que o vírus não se tornou eficaz a passar de ser humano para ser humano. Mas soou o primeiro grande alerta em 1997 e a partir daí melhorou-se a vigilância mundial. O que se começou a descobrir? Que em algumas zonas apareciam novos vírus com um potencial pandémico. Os vírus que estavam em circulação nessa altura, no Médio Oriente sobretudo, eram vírus que, quando se manifestavam e passavam a barreira das espécies, eram altamente letais. Os países fizeram então verdadeiros seguros de saúde, reservas antecipadas de vacinas e antivirais. Eis senão quando, em pleno Verão, surge a gripe A [H1N1]. Tecnicamente, de facto, houve uma pandemia porque houve um novo vírus à escala planetária que se manifestou fora da época sazonal, no Verão, atingiu grupos etários que não é habitual atingir, não era muito letal, mas transmitia-se imenso.

Quantas pessoas morreram em Portugal? Não foi excessivo o investimento no antiviral Oseltamivir, que custou cerca de 22,6 milhões de euros foi recentemente incinerado?

As mortes foram na ordem das dezenas, mas o vírus matava pessoas relativamente jovens. À distância é fácil falar, mas na altura tudo indicava que era um vírus de elevada letalidade. Relativamente ao investimento, era o melhor que havia na altura e os países tentaram ter o melhor para os seus cidadãos para o caso de a pandemia ser grave. Isto é como os seguros para as nossas casas, temos seguros contra incêndios, contra roubos, e a última coisa que queremos na vida é activar um seguro. Estou muito grata à natureza por termos tido uma pandemia benigna. Quando vi a directora da OMS anunciar em directo [o início da pandemia], chorei porque conheço pessoas cujos avós morreram na pandemia de 1918. Quanto ao Oseltamivir, o dossier foi encerrado com a incineração do produto em condições de segurança. 

Hoje estaremos preparados se surgir outra ameaça deste tipo?

Aprendemos muito. Naquela altura estávamos a fazer tudo do princípio. Hoje temos planos pandémicos mais simples, planos multiusos e multirriscos. Para o Ébola, fizemos um plano em que há uma espinha dorsal, mas depois o que existe são orientações técnicas flexíveis e adaptáveis.

Há quem diga que serão os vírus a acabar com a humanidade. Concorda?

Não sei como é que o mundo vai acabar...Não temos dúvidas de que vão surgir novas epidemias no futuro, faz parte da natureza dos vírus sofrerem mutações. Mas hoje é completamente diferente enfrentar uma pandemia, em comparação com o que tínhamos há 100 anos. Também é evidente, porém, que somos cada vez mais milhões no planeta e que hoje um vírus dá a volta ao mundo em horas, por isso é que a resposta tem que ser muito rápida.

Quais são os seus grandes objectivos à frente da DGS?

O que quero é saber cada vez melhor como estão os determinantes da saúde, não só no meu país como no mundo, até porque não sabemos quão porosos vamos ser no futuro. Depois, quero estar muito atenta também ao que acontece em termos de inovação, tecnologias, medicamentos e saber qual é o nosso estado de saúde, quais são as tendências.

Uma das suas metas é diminuir a mortalidade prematura para menos de 20%?

Claro, um dos grandes objectivos é baixar a mortalidade prematura. Gostava de chegar ao fim do mandato e ter, como dizia o doutor Francisco, mais gente a apagar as velas dos 70 anos, e também de ver as pessoas a viver mais tempo e com menos carga de doença. Temos uma fortíssima aposta no envelhecimento saudável e activo. E gostava ainda muito de estudar e de intervir sobre um grupo etário sistematicamente esquecido, os dos adultos jovens do sexo masculino. Saem da infância aos 18 anos e, até terem o primeiro episódio de doença, não se sabe muito sobre a forma como vivem, as suas expectativas. E gostava que as pessoas vivessem com menos fragilidade, com mais autonomia.

Na mortalidade infantil já não vai ser possível conseguir melhores indicadores?

Aqui, o objectivo é manter [os indicadores] e mantê-los é muito difícil. Temos grandes prematuros de baixo peso, e acompanhar estas crianças é outro desígnio da DGS. Quero promover estudos para saber como evoluíram ao longo da vida.

A fatia para a prevenção em Portugal é escassíssima. Isso não a preocupa?

É escassíssima se olharmos para a fatia directamente investida. Mas há vontade política para investir mais em prevenção. Na prevenção primária, antes das coisas acontecerem, e, na secundária, melhorando rastreios. Na prevenção terciária, optimizando o tratamento, e hoje já se fala em prevenção quaternária, que passa por minimizar os efeitos da nossa intervenção e terapêuticas, fazer tudo para controlar a infecção hospitalar, o sobrediagnóstico, o encarniçamento terapêutico. Mas sou muito realista. Tenho a noção de que a DGS é apenas uma peça no sistema de saúde.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários