A globalização no Porto de Setúbal

Esperemos que nas horas decisivas que passam agora até um acordo com os trabalhadores, as autoridades políticas saibam estar do lado certo. Porque desproteger os trabalhadores do Porto de Setúbal seria também escolher um lado fraco para Portugal na globalização.

A melhor aula que se pode ter sobre globalização não é com um professor de economia mas com um camionista. Por exemplo, um que transporte peças de plástico para os carros que se fabricam na Autoeuropa de Palmela. Com meia dúzia de perguntas simples ele poderá explicar-nos como hoje em dia não se compra “um” carro apenas, de uma determinada marca e modelo, mas “o” carro específico que é o resultado das decisões que se tomaram na loja especializada e que quase ao mesmo tempo está a ser montado numa fábrica algures no mundo: as permutações de cores, materiais, acessórios e extras fazem com que cada marca e modelo possa ser muitos automóveis diferentes. Por causa disso, os stocks de peças não são geridos como eram antes. A fábrica não quer armazenar peças a mais e o nosso camionista não pode chegar cedo demais nem com peças de sobra. Por outro lado, como me explicavam uma vez, “por cada minuto de atraso o meu patrão já está a pagar multas à construtora”.

Este é o mundo das linhas de montagem modernas, o JIT, abreviatura para a expressão em inglês “just in time” — “mesmo a tempo” — que por sua vez designa apenas um dos aspectos das cadeias de produção hoje em dia cada vez mais complexas. O exemplo da Figueira da Foz à Volkswagen Palmela é relativamente simples. Um tudo nada mais complicado seria um exemplo, também real, da Figueira da Foz à Nissan de Sutherland, em Inglaterra. Se vos perguntarem por que será um "Brexit" sem acordo tão complicado, podem responder que o Just In Time é das razões: uma caixa de mudanças de um Mini atravessa o Canal da Mancha três vezes e precisa de chegar “mesmo a tempo” de cada uma delas. Se houver fronteiras de novo no Canal, atrasando e arriscando cada um dos “mesmo a tempo” de que é feita a linha de montagem à escala continental, é a fábrica britânica o elo mais fraco da cadeia de produção.

Do outro lado estão os estivadores. O seu conhecimento da globalização é feito a partir de um ponto de vista diverso do dos camionistas. Os camionistas são como Maomé que vai à montanha, os estivadores vêem a montanha globalização vir a seu caminho. Mas em minha opinião nenhum curso sobre o tema poderia dispensar uma aula ministrada por cada uma destas profissões.

Tal como uma construtora de automóveis, pela sua escala e pela dimensão das suas encomendas, consegue fazer exigências aos seus fornecedores sobre o minuto preciso em que chega a alavanca das mudanças, também essa mesma construtora consegue fazer exigências aos transportadores que lhes escoam o produto finalizado — e, por extensão, ao país cujo PIB depende, como acontece com Portugal, de uma fábrica de automóveis a laborar em plena atividade. Os automóveis têm de sair, depressa, com constância, e baixo preço.

Aos pontos de passagem onde a carga final se arrisca a ficar parada dá-se também um nome em inglês: são os “choke points”, ou “pontos de estrangulamento”. O Porto de Setúbal é um desses pontos de estrangulamento, mas a expressão é evocativa de mais do que uma maneira.

O que temos visto na luta dos estivadores do Porto de Setúbal por ao menos um mínimo de estabilidade no trabalho é a ilustração de como um país — Portugal, mas poderia ser outro — inserido na globalização do século XXI com práticas laborais que se arriscam a ser cada vez mais parecidas com as do século XIX. Os trabalhadores da estiva no Porto de Setúbal não trabalham apenas segundo o mais injusto regime de trabalho do passado — à jorna — mas ainda pior do que isso: trabalham com contratos ao turno, pré-anunciado por SMS. Com a mesma facilidade se pode ser “contratado” — se é que isto merece esse nome — como despedido.

A resposta para isto não pode ser encolher os ombros e dizer que a globalização é assim. E também não pode ser achar que a globalização é uma coisa que se acende e desliga como quem carrega num interruptor. Os mesmos eleitores que votam contra a globalização numas eleições que ocorrem de quatro em quatro anos são também consumidores que a reforçam em atos de consumo que ocorrem todos os dias.

A resposta tem de estar em saber que tipo de papel queremos ter na globalização. E isso implica de que lado queremos estar e a quem queremos proteger. Sem lei que o proteja, sem força sindical e negociar, sem vontade política por parte do governo, quem se lixa é o mexilhão. Mas não precisa de ser assim, nem deve ser assim: Portugal pode preparar-se para ter um papel mais especializado na globalização, e proteger melhor os seus trabalhadores. Esperemos que nas horas decisivas que passam agora até um acordo com os trabalhadores, as autoridades políticas saibam estar do lado certo. Porque desproteger os trabalhadores do Porto de Setúbal seria também escolher um lado fraco para Portugal na globalização.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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