Médicos cubanos começam a sair do Brasil e os efeitos já se fazem sentir

Os municípios recorrem a contratações de emergência e a horas extras para colmatar a falta de assistência. Há uma corrida às vagas, mas não é certo que as faltas sejam colmatadas.

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Médicos cubanos chegaram ao Brasil em 2013 Ueslei Marcelino/REUTERS

Começaram a regressar a Havana nesta quinta-feira os médicos cubanos que prestavam serviços em locais remotos do Brasil, depois de Cuba ter anunciado a sua saída do projecto na semana passada. Apesar das inscrições para substituir os médicos cubanos, os efeitos da sua saída sentem-se em todo o país. Os centros de saúde vêem-se obrigados fazer contratações de emergência e a exigir horas extras aos médicos brasileiros.

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) confirmou esta quinta-feira que até 12 de Dezembro os mais de oito mil médicos cubanos no programa Mais Médicos vão deixar gradualmente as suas funções. Ainda que muitos planeiem ficar em solo brasileiro, estão agendados cinco voos para Havana, de quinta-feira a sábado.

Na quarta-feira abriram as inscrições para substituir os médicos cubanos, que neste momento ocupam 8332 dos 18.240 lugares do programa Mais Médicos. Na manhã desta quinta-feira, foram registadas 6394 inscrições na selecção de emergência e 2209 profissionais já escolheram onde vão exercer funções. Só que muitos desses médicos candidataram-se para trabalhar em capitais de estados e municípios de regiões metropolitanas, diz a colunista da Folha de São Paulo Mônica Bergamo. 

site do Mais Médicos ficou inacessível três horas depois do início das inscrições, contabilizando 3336 inscrições e mais de um milhão de acessos simultâneos no momento da abertura do sistema, avançou o Ministério da Saúde em comunicado. Em causa estão 8517 vagas para funções em 2824 municípios e 34 comunidades indígenas.

As inscrições são até dia 25 de Novembro para “médicos brasileiros ou com diploma revalidado no país” e o início das actividades está previsto para 3 de Dezembro, para “não deixar faltar assistência médica em áreas com médico da cooperação”, disse o ministro da Saúde, Gilberto Occhi. Caso as vagas não sejam preenchidas, será publicado um novo edital no dia 27 de Novembro, para brasileiros formados no exterior e estrangeiros.

Com a saída dos médicos cubanos, cerca de 600 municípios brasileiros podem ficar sem atendimento clínico, o que se traduz em cerca de 29 milhões de pessoas sem assistência médica, estima o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Para as comunidades indígenas, o fim da participação cubana no programa Mais Médicos representa a perda de 301 dos seus 372 médicos.

Cuba anunciou a saída do programa Mais Médicos depois de críticas do Presidente eleito, Jair Bolsonaro, ao regime cubano, que retém 70% do salário dos médicos cubanos no Brasil e não permite que as suas famílias se mudem para o país durante o seu período contratual. Bolsonaro acrescentou que os médicos estrangeiros têm de passar no exame que permite a profissionais formados no estrangeiro exercer no Brasil.

Segundo dados oficiais, citados pela Folha de São Paulo, para 2016, a taxa de aprovação dos médicos cubanos foi de 24,3%. Para os brasileiros formados no estrangeiro, foi de 28,5%. A média de todas as nacionalidades foi 24,8%. Aos olhos do Governo cubano, as declarações de Bolsonaro puseram em causa as qualificações dos seus profissionais de saúde.

O projecto foi lançado em 2013 pelo Governo da presidente Dilma Rousseff, após os grandes protestos populares nas ruas, para colmatar a carência de médicos nos municípios do interior, nas periferias das grandes cidades e nas comunidades indígenas. Com a intervenção do Mais Médicos, 63 milhões de pessoas tiveram assistência médica pela primeira vez.

Alguns concordam com Bolsonaro

O médico cubano Adrian Estrada Barber, que exerceu funções durante três anos em Arapoti, no Paraná, disse ao jornal Folha de São Paulo que concorda com as “exigências” do Presidente eleito e que se sentia “explorado pelo programa”. Não pode voltar a Cuba durante oito anos, porque saiu do Mais Médicos em 2016, quando começou a trabalhar por conta própria. 

“Saí de Cuba com o objectivo de economizar para continuar depois o estudo por lá. Mas quando a gente chega aqui e vê como funciona o mundo... Decidi que não dava para voltar. Acho que a maioria dos médicos se sente reprimida pelo sistema de Cuba. A gente não tem liberdade para fazer as coisas.”

Contudo, há quem escolha regressar a casa. A médica cubana Evelyn Fernandes deixou as suas funções em São Miguel Arcanjo, em São Paulo, para se dedicar à venda dos seus bens imobiliários. Depois de um ano e meio na cidade, vai regressar à terra natal “de coração partido”, disse ao Estado de São Paulo. Dos sete médicos que o programa destinou à região, seis já foram notificados para regressar a Cuba. “Não sei o que vai acontecer, porque atendíamos muitas pessoas. Eram 20 ou mais consultas diariamente. Há idosos e crianças que acompanho desde que cheguei.”

“[Os médicos cubanos] tiveram de interromper o atendimento abruptamente, porque foram avisados que os voos eram já esta semana,” disse Maria Dalva Amim dos Santos, secretária de Saúde de Embu-Guaçu, em São Paulo, ao Estado de São Paulo. Dos 19 médicos no centro de saúde da cidade, 16 eram cubanos. “Já realizámos dois concursos neste ano e, para a especialidade de médico da família, não tivemos nenhum candidato.”

Em Viamão e Gravataí, no Rio Grande do Sul, os médicos cubanos começaram a deixar os seus postos na terça-feira, para preparar a viagem de regresso. O secretário de Saúde de Viamão, Luís Augusto de Carvalho, disse ao Estado que foi “uma surpresa”. “Tínhamos a informação de que parte dos médicos deixaria o país a 25 Novembro e outra a 25 de Dezembro”, afirmou. Carvalho estima que duas mil pessoas deixarão de ser atendidas mensalmente e que as contratações de emergência se traduzirão em gastos mensais de 320 mil reais (73 mil euros).

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