Saída de médicos cubanos pode deixar 28 milhões de brasileiros sem assistência clínica

Associações municipais pedem a Bolsonaro que reavalie o posicionamento sobre o programa Mais Médicos, temendo impacto junto da população mais pobre.

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Com a saída dos médicos cubanos, cerca de 28 milhões de brasileiros podem estar em risco de ficar sem assistência médica Reuters/ADRIANO MACHADO

A decisão de Cuba de retirar os seus médicos do programa brasileiro Mais Médicos pode deixar 28 milhões de pessoas sem assistência médica, sobretudo em regiões mais desfavorecidas e de difícil acesso, alertam organizações de saúde e os autarcas de todo o país.

Cuba decidiu sair deste programa depois de críticas do Presidente eleito, Jair Bolsonaro, e de este ter dito que os médicos estrangeiros têm que passar num exame para poderem exercer no Brasil. 

O programa Mais Médicos foi lançado em 2013 pelo Governo da Presidente Dilma, com o objectivo de, através da presença de médios de outros países, suprir a carência de médicos nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades do Brasil. 

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde mostrou-se preocupado, já que a maioria dos médicos cubanos trabalha “em áreas vulneráveis e com baixos índices de fixação profissional”, como o Norte, o Nordeste e as periferias das grandes cidades, onde o interesse dos profissionais brasileiros em ocupar as vagas é menor.

O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e a Frente Nacional de Prefeitos (presidentes de câmaras municipais) acrescentaram que a “rescisão repentina destes contratos aponta para um cenário desastroso em pelo menos 3243 dos 5570 municípios do país; 3228 (79,5%) só têm médico pelo Mais Médicos e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba”.

Pediram uma “revisão do posicionamento do novo Governo”, já que a situação será “cruel para toda a população, especialmente para os mais pobres”. Segundo dados do Ministério da Saúde, 63 milhões de pessoas tiveram assistência médica pela primeira vez com a intervenção do Mais Médicos.

Em comunicado, o Ministério da Saúde brasileiro anunciou esta sexta-feira que vai abrir “um edital” ainda este mês para “médicos que queiram ocupar as vagas que serão deixadas pelos profissionais cubanos”, que neste momento ocupam 8332 dos 18240 lugares do Mais Médicos. O Conselho Federal de Medicina acrescentou que o Brasil “conta com médicos formados no país em número suficiente” para ocupar as vagas futuras, mas que “cabe ao Governo” oferecer infra-estruturas de trabalho. Em 2013, segundo o Governo federal, apenas 11% das vagas oferecidas no primeiro edital foram preenchidas por médicos brasileiros.

Acusações de Bolsonaro

O Presidente eleito acusou Cuba de “explorar os seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais”, já que cerca de 70% do valor é absorvido pelo Governo. Acusou de “irresponsabilidade” o Governo cubano, pois o envio de médicos para o Brasil tem além de “impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros" consequências na "integridade dos cubanos” - referia-se ao facto de que as famílias dos médicos cubanos ficaram no país natal, o que, segundo Bolsonaro, é “mais que uma tortura para uma mãe”. Outra das exigências do Presidente eleito é a realização de um “teste de capacidade”, o Revalida - um exame de revalidação do diploma de médicos formados no estrangeiro.

“Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, sendo hoje a maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, disse Bolsonaro no Twitter, na quarta-feira, depois de o Governo cubano anunciar a sua decisão.

Cuba, que envia profissionais de saúde para o Brasil desde 2013, anunciou em comunicado a saída do projecto devido a “referências directas, depreciativas e ameaçadoras” que põem em causa a “presença e a qualificação” dos médicos cubanos no país. A intenção de Bolsonaro de alterar os “termos e condições do programa Mais Médicos, em desrespeito à Organização Pan-Americana da Saúde e ao estabelecido por ela com Cuba” também influenciou a decisão.

Os médicos cubanos foram apanhados de surpresa pela decisão, mostrando-se inseguros quanto ao futuro. “Soube pelos sites de notícias. Não recebi nenhum comunicado e ainda não tenho informação de como vai ser o regresso”, disse um médico que pediu anonimato ao jornal O Estado de São Paulo. Há quatro anos que trabalha numa aldeia indígena na Amazónia, onde não havia assistência médica. “Antes de eu chegar, a aldeia não tinha médico. O meu contrato, teoricamente, ia até 2020.”

A embaixada de Cuba informou o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde na quinta-feira quanto à saída dos médicos cubanos, que deixarão o Brasil até o final do ano. Um grupo de 196 médicos já regressou a Cuba na quinta-feira, depois de três anos no Brasil ao abrigo do Mais Médicos.

Crise anunciada

Foram vários os ataques de Bolsonaro aos médicos cubanos durante a campanha eleitoral, pelo que a crise já era esperada pelas organizações de saúde brasileiras. O Presidente eleito disse que usaria o Revalida para “expulsar os médicos cubanos” do Brasil, “grupelhos que se apoderaram do poder” e que há mais de 20 anos “assaltam” o país e o levam numa direcção oposta.

Ao jornal Correio Brasiliense, Bolsonaro disse que não era possível “manter relações diplomáticas com um país que trata os seus dessa maneira”. “Queremos o Mais Médicos? Podem continuar. Revalida, salário integral e traz a família para cá.

Dilma Rousseff condenou a atitude de Bolsonaro, que classificou de “autoritária e desrespeitosa”. Para Rousseff, as declarações do Presidente eleito são “um atentado contra a população brasileira, que vai deixar de ter acesso a valorosos e competentes profissionais na atenção básica à população mais pobre do Brasil”.

O ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse no Twitter que “é isso o que acontece quando se põe o espírito da guerra e os interesses particulares acima das necessidades do povo”.

Em Abril de 2017, Cuba decidiu suspender o envio de 710 médicos para trabalhar nas cidades brasileiras, como forma de protesto contra a permanência de médicos por mais tempo do que o previsto pelo programa. O acordo entre os dois países estabelecia que ao fim dos três anos os recrutados regressariam a Cuba para dar lugar a novos médicos, de modo a evitar que criassem laços com o Brasil. As declarações de Bolsonaro de que vai dar asilo a “todo o cubano que quiser” devido à “ditadura na ilha” podem, assim, agravar a crise com o Governo cubano.

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