Noites e luzes da América

O amor americano pela liberdade e a repulsa contra os abusos de poder de Trump têm contido o pior, mas o nacionalismo continuará a crescer, enquanto as causas mais profundas do descontentamento com os partidos democráticos não forem enfrentada.

Foi num dia sombrio que se comemoraram, em Paris, os 100 anos do fim da I Guerra Mundial, hecatombe nacionalista que fez dez milhões de mortos.

O Presidente francês lembrou que regressaram o nacionalismo e a recusa do multilateralismo, que enfraquecem as Nações Unidas e a União Europeia. O acordar do nacionalismo polariza as sociedades europeias e põe em risco as liberdades. Macron alertou que o nacionalismo se alimenta da crise económica e das desigualdades, embora sem propor uma política para as superar. A chanceler alemã, Angela Merkel, afirmou, em tom grave, que estavam a desaparecer os europeus que viveram a tragédia da II Guerra Mundial e que só agora é que iríamos saber se tínhamos aprendido as “lições da História”.

Pesava sobre os líderes políticos reunidos em Paris o comportamento inquietante do Presidente dos Estados Unidos, que não compareceu ao Fórum da Paz, organizado em paralelo às comemorações oficiais do fim da Guerra, que contou com a participação de 70 Chefes de Estado e de Governo.

Lembraram-se certamente, ao ver a cara de poucos amigos de Trump, que foi a América que, por duas vezes, sacrificou a sua juventude para salvar a Europa dela mesma. Era como se a ficção de Philip Roth, em A Conspiração contra a América, se tivesse tornado realidade. O que seria a Europa hoje, se Charles Lindbergh, simpatizante Nazi e defensor da supremacia branca, tivesse derrotado Roosevelt nas presidenciais americanas de 1940? Ali estava Trump, tal Lindbergh, 78 anos depois, isolacionista e promotor da extrema-direita europeia.

Pesavam também, certamente, as notícias que vinham do Brasil – nação pioneira do multilateralismo, que, por isso, abre a Assembleia Geral das Nações Unidas – onde, no meio de uma crise económica e ética, elegeram Presidente o reacionário Bolsonaro.

Por esses dias, em Paris, podiam os Chefes de Estado visitar a exposição de Egon Schiele que retrata, como só o expressionismo o fez, a angústia do artista impotente, perante o crescimento do ódio nacionalista que iria levar à Grande Guerra. Podiam ver também o filme En guerre, de Stéphane Brizé, que mostra como uma globalização mal regulada lança tantos no desemprego e na revolta.

Em Paris, no Fórum da Paz, os Chefes de Estado discutiram como enfrentar as consequências internacionais da emergência do unilateralismo, a necessidade de reforçar o sistema multilateral para gerir as crises internacionais, como a guerra na Síria e no Iémen, de garantir os acordos de não-proliferação nuclear, bem como a necessidade de conter o aquecimento global.

Em Portugal, comemorou-se o fim da I Guerra Mundial em ambiente de otimismo, como se depois de termos sido, numa Europa democrática, uma ilha de ditadura, agora fôssemos, numa Europa contaminada, uma ilha imune ao nacionalismo. Não posso deixar de me lembrar de uma visita recente a Bragança, onde li, nas muralhas do velho castelo, numa parede negra, a longa lista dos brigantinos que morreram na I Guerra Mundial e a lista, não menos longa, dos que morreram na Guerra Colonial. Não, Portugal não é uma ilha. O nacionalismo e a guerra não nos são estranhos e as pulsões identitárias também por aqui florescem, como se pode observar nos apoios a Trump e a Bolsonaro.

Ao verem Trump, rude e inquieto, seria bom que os europeus se tivessem perguntado por que razão um dos homens mais poderosos do Mundo se sentia ferido e isolado.

A resposta estava nas boas novas que vinham da América: Trump acabara de sofrer uma pesada derrota nas eleições parlamentares de meio mandato e para governadores em vários estados.

Quem está a travar Trump é uma vibrante sociedade civil americana. O que está a derrotar Trump são os movimentos das mulheres, os movimentos pelos direitos das minorias, dos imigrantes e dos refugiados, são os movimentos dos jovens contra as armas, os movimentos dos ecologistas, são os movimentos que tiram partido de todas as formas de ação cívica, desde manifestações de rua às redes sociais, passando pela via judicial, para conter e derrotar o negacionismo ecológico, o sexismo, a ofensiva contra os direitos humanos e a corrupção da política pelos grandes financiadores de campanhas eleitorais. Ao contrário do que muitos previam, foi a agenda dos valores liberais do “politicamente correto” que mobilizou os eleitores, com as organizações feministas a desempenharem um papel fundamental.

O amor americano pela liberdade e a repulsa contra os abusos de poder de Trump têm contido o pior, mas o nacionalismo continuará a crescer, enquanto as causas mais profundas do descontentamento com os partidos democráticos não forem enfrentadas. Como António Guterres, no Fórum da Paz, lembrou, a subida do nacionalismo resulta, como sucedera nos anos 30, da crise financeira, do sofrimento que trouxe aos mais desfavorecidos.

Para vencer o nacionalismo, não bastam discursos inspirados, é preciso reformar os sistemas políticos para os tornar mais participativos, garantir a regulação da globalização financeira e combater as desigualdades, o que significará também solidariedade social e fiscal na União Europeia, entre os cidadãos mais ricos e os mais necessitados. Nas vésperas das eleições de Maio de 2019, em resultado das quais poderemos ver a extrema-direita tornar-se no segundo grupo do Parlamento Europeu, está mais do que na hora de a sociedade civil europeia seguir o exemplo da americana, ultrapassar o quadro nacional e agir, sem exclusões sectárias, a nível da União Europeia, de Portugal à Polónia.

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