Adamo: “Sou um europeu convicto, pratico a Europa há meio século"

Em mais um regresso a Portugal, Salvatore Adamo encheu salas em Lisboa e em Espinho. Cantou os êxitos que fizeram dele um herói da chanson nas décadas de 60 e 70 e apresentou o seu novo disco. E falou ao PÚBLICO de Amália e de Tony Carreira, da Europa e de música romântica, humanista e de intervenção.

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Adamo em Espinho Manuel Roberto

O autor e intérprete de Tombe la neige regressou no final da última semana a Portugal para mais dois concertos: quinta-feira, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa; sábado, no Casino Solverde, em Espinho. Encheu as duas salas, e, numa entrevista ao PÚBLICO entre as duas actuações, disse-se impressionado com a reacção da assistência em Lisboa, onde já não actuava há mais de 20 anos.

“Não sabia como é que as pessoas me iriam acolher, de que canções se lembravam”, disse, confessando mesmo ter sentido algum "medo" – “Aquilo a que, em francês, chamamos ‘le trac’", explicou – quando entrou no palco. “Mas fiquei logo à vontade quando percebi que toda a gente tinha boa memória”, acrescenta o cantor nascido em Itália em 1943, mas radicado na Bélgica desde pequeno, dizendo ter ficado “tocado” quando percebeu que se encontrava perante “um público muito atento relativamente às canções novas, e simultaneamente muito entusiasmado com as mais antigas”.

Já em Espinho, onde veio actuar pela quarta vez, recorda também ter sempre vivido situações excepcionais “para um público de casino”. “Normalmente, nos casinos as pessoas bebem, conversam, mas aqui não: estavam sempre muito atentas, e houve sempre uma comunhão muito bela”.

Salvatore Adamo from Público on Vimeo.

Prefere actuar num auditório clássico, como o Coliseu dos Recreios, ou num ambiente de casino? 
Francamente, acomodo-me a qualquer situação. No entanto, para cantar algumas das minhas canções, principalmente as mais intimistas, uma sala de teatro convencional permite uma atenção mais concentrada. Mas lembro-me de que aqui [no Casino de Espinho] o público, no final, dançava em cima das mesas. Gosto muito disso, de proporcionar a festa, e os casinos são os lugares da festa.

Depois de tantas visitas a Portugal, já conhece o país? 
Não. Lamentavelmente, nunca tive a oportunidade de conhecer bem o país. Vim sempre por razões profissionais. Mas faz parte dos meus projectos – já falei com a minha mulher – virmos passar aqui uma semana com os filhos e as netas – já tenho duas. E tenho amigos que me dizem que Portugal tem lugares magníficos para visitar, e que o clima é sempre muito suave. Esse é verdadeiramente um dos meus projectos, e é genuíno.

O que é que conhece da música portuguesa? 
Tenho, claro, uma recordação imperecível da imensa Amália Rodrigues, que me fez a honra de cantar o Inch’Allah, uma interpretação magnífica, que não era fado. E conheço bem o Tony Carreira, com quem fiz um duo com a minha canção Sur ma vie. É alguém de quem gosto muito, é um gentleman, e produz um bom vinho na sua quinta [risos].

Esteve alguma vez com a Amália em palco? 
Não. Encontrei-me com ela várias vezes, e vi-a a actuar no Olympia [de Paris]. E pouco tempo antes da sua morte pediram-me que escrevesse uma música para ela a partir de um poema português. Fi-lo, mas, infelizmente, ela já não o pôde gravar.

Conhece outros nomes da música portuguesa? 
Lamentavelmente, não posso dizer que conheço. No nosso mundo, somos sempre muito egocêntricos [risos]…

Habitualmente, nos concertos em Portugal, interpreta Tombe la neige em português. Sabe que é, talvez com Inch’Allah, a sua canção mais popular entre nós? 
É verdade, e é por isso que normalmente a coloco no final. Mas Tombe la neige também é a minha canção mais popular no Japão, onde existem mais de 500 versões. Por isso, também termino lá os meus concertos com ela. Em França, também é uma canção muito popular; talvez mesmo a mais conhecida. Mas aí não termino os meus concertos com ela. Prefiro fazê-lo com uma canção mais alegre, como, de resto, fiz ontem [quinta-feira] em Lisboa, onde depois de Tombe la neige interpretei Les filles du bord de mer. E o público respondeu muito bem: deram as mãos e dançaram na sala.

É conhecido também por ser um poliglota. Isso acontece por interesse cultural, ou por razões de trabalho? 
Falo muitas línguas porque tive a sorte de as aprender na escola. Vivi na região da Valónia, na Bélgica, e, além do francês, aprendi o flamengo como segunda língua, o inglês como terceira e o alemão como quarta. Em casa dos meus pais falávamos italiano e também tive facilidade em chegar ao espanhol. Mas fazia-o também por interesse pela cultura do país onde era acolhido. E por respeito.

Qual é, afinal, a sua nacionalidade? As biografias dizem que é um “cantor francófono italo-belga”… 
Eu sou italiano. Pedi também a nacionalidade belga apenas há três semanas, e estou à espera da decisão. E isto porque a Itália, até há pouco tempo, não aceitava que um cidadão seu tivesse dupla nacionalidade. Mas agora isso é permitido. E por fidelidade aos meus pais – e também por amor ao país – decidi manter-me italiano, e da Sicília, onde nasci. Mas, também por reconhecimento para com a Bélgica, pensei que lhe devo o tornar-me belga. Além de que moro lá.

No início deste ano, editou um novo álbum, Si Vous Saviez. É um disco de originais? 
Sim. Completamente. São 13 canções novas, com arranjos de um jovem prodígio, Clément Ducol, que fez arranjos de grande riqueza e de grande emoção, sobretudo. É, de resto, um álbum que gravei praticamente ao vivo, mesmo se num estúdio, com uma orquestra sinfónica. Estávamos separados por uma divisória, mas eu via toda a orquestra e demos a prioridade à emoção, mais do que às questões técnicas. As vozes, podíamos gravá-las quando quiséssemos, mas fiz questão de cantar em simultâneo com a orquestra.

Qual é o segredo da sua longevidade, como intérprete mas também como autor e compositor? 
O segredo é sentir a necessidade de trabalhar. Mas trabalho também por espontaneidade, porque continuo a ter uma grande curiosidade pela vida e por tudo aquilo que acontece à minha volta. Esforço-me para que todas as emoções passem pelas canções, mesmo as situações mais divertidas. Tenho bastantes canções de teor humorístico e com muita ironia, que são provavelmente menos conhecidas em Portugal do que em França, por exemplo.

Num mundo cada vez mais dominado pela cultura norte-americana, qual é o lugar da chanson
Nós estamos marcados pela presença da língua americana, mas não forçosamente pela cultura. É verdade que o cinema e o audiovisual americanos têm também uma presença muito forte. Mas acho que os povos latinos não se defendem mal com a sua cultura.

Acredita que a Europa vai poder continuar a resistir a esse domínio? 
A cultura americana está aí, não a podemos ignorar. Mas ela não é obrigatória. Podemos sempre manter a nossa cultura de origem, do coração. Independente de, por razões profissionais ou comerciais, muita gente estar obrigada a conhecer e a estar ao corrente de tudo o que se passa nos Estados Unidos, eu vivo na latinidade, entre o francês, o italiano, o português... Sinto-me bem dentro desta cultura.

E, do ponto de vista político, acredita na Europa, tendo em conta os problemas com que a União Europeia está a confrontar-se actualmente? 
Sou um europeu convicto, pratico a Europa desde há meio século. Falo várias línguas que fazem com que eu tenha um pouco da Europa em mim. Mas penso que é uma questão de geração. Nós demos o primeiro passo, lançámos as bases e os princípios... É verdade que há nacionalismos que renascem, e creio que ainda vão passar alguns anos até que as mentalidades se afirmem verdadeiramente como europeias e que não se trate apenas de ligações comerciais ou de segurança. A Europa, se conseguir guardar os seus princípios, o seu altruísmo, a forma europeia de pensar, irá conseguir chegar lá. Mas é preciso paciência.

No concerto em Lisboa, evocou Martin Luther King e referiu-se também ao atentado no Charlie Hebdo. Durante a sua carreira, criou e interpretou canções com referências e preocupações de ordem política… 
De ordem humanista, nunca política de uma forma específica. Não são canções de intervenção. Quando me permito fazer passar uma mensagem, é sempre com um propósito humanista. Na minha vida, senti a necessidade de me manifestar duas vezes, quando da “Marche blanche” na sequência do Caso Dutroux [movimento social de protesto, em Bruxelas, em 1996, após a descoberta dos crimes de pedofilia e homicídio perpetrados por Marc Dutroux], e em apoio dos “sans papiers”, que faziam greve de fome numa igreja de Bruxelas.

Mas também abordou temas como a Guerra Civil de Espanha, ou a censura na URSS… 
Sim, escrevi a canção Manuel; e também escrevi uma canção, no tempo da União Soviética, para Vladimir Vysotsky [1938-1980, cantor, compositor, poeta e actor russo que foi vítima de censura]. Há sempre causas que me tocam, mas eu tento sempre dar uma feição poética às minhas canções. A poesia pode ser um veículo de revolta. De resto, esse foi o sentido do movimento romântico, que foi um movimento de revoltados.

Qual é o papel da música nos dias de hoje, numa sociedade marcada pela omnipresença da imagem? 
A música tornou-se uma expressão universal. Felizmente, as pessoas aprenderam a escutar todo o género de música. E eu gosto de todas as músicas quando sinto que elas são sinceras. E a música, mesmo para pessoas que não falam a mesma língua, exprime coisas, ideias, que todos podem compreender. Para isso, chega conseguir o tom certo; chega a forma como os músicos tocam para se compreender se alguém quer ou não estender a mão ao outro. Isso sente-se na música. É claro que há uma música mais militante, nas quais percebemos intenções muitas vezes muito pretensiosas.

Também fez cinema, como actor e inclusivamente como realizador (L’Île aux Coquelicots, 1970). Que importância teve na sua vida e carreira? 
Foi uma bela experiência. O primeiro filme, Deixem-me Viver! (Les Arnaud; Léo Joannon, 1967), aceitei fazê-lo sobretudo pela presença de Bourvil [1917-1970], que é um actor imenso e um ser humano magnífico, com uma imensa humildade, apesar do seu talento. Antes disso, propuseram-me vários papéis, mas não me sentia capaz. Acabei por me deixar tentar, talvez porque acabava de perder o meu pai e, no filme que eu iria fazer com o Bourvil, ele adoptava-me no fim. Inconscientemente havia essa emoção: é claro que um pai nunca se substitui, mas, durante a rodagem, tive a oportunidade de expressar a minha ternura pelo meu pai.

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