O salto no escuro

Numa metáfora que nós, portugueses, bem conhecemos, diria que o rating democrático de Bolsonaro é “lixo” e que a perspectiva interna e externa deve ser de contínua vigilância.

Por um voto se ganha, por um se perde. Neste caso, como expectável, foi por milhões. Talvez não tão mau quanto se antecipava logo após a primeira volta, uma vez que Bolsonaro ficou pelos 55% e não atingiu a fasquia psicológica dos 60%. Talvez não tão mau porque, finalmente, na última semana de campanha, Haddad descolou de Lula, admitiu erros do PT e apelou a uma frente democrática, uma polarização absoluta contra os riscos de um discurso fascista e de cerceamento da liberdade.

Os sinais da noite eleitoral não são famosos. O Presidente eleito manifestou um comportamento algo esquizofrénico: com diferença de minutos, fez um discurso nas redes sociais com a Bíblia, a Constituição Federal e um livro sobre Churchill, tentando demonstrar que seriam as suas referências.

A Bíblia e, por muito que se admire – como eu –, o primeiro-ministro britânico estão a mais. A primeira porque um Presidente da República governa para todos os cidadãos, crentes ou não. O segundo, na medida em que, sendo Churchill um democrata, governou grande parte do seu consulado em guerra.

E tudo aponta para que Bolsonaro se prepara para uma guerra. Uma “guerra santa”, na sua mente: ele contra os bandidos, ele contra os valores da “família tradicional” (o que deixa muita gente de fora), ele contra a corrupção – bem, se não implicar uma suspensão democrática e uma restrição inaceitável de direitos fundamentais –, ele a favor do uso e porte de arma generalizado – mal, estando logo a Norte o exemplo disso, em que um estupidificante e tautológico Trump argumentava que se os judeus mortos na sinagoga de Pittsburgh tivesses armas teriam morrido menos. E pouco mais se sabe: na economia, supostamente um liberal, ao que parece com um encapotado programa de privatizações, a que a Petrobrás não parece escapar. Não admira que as bolsas tenham acordado em alta. Um general na educação, em si mesmo, também não é grande sinal.

Mas voltemos à reacção de domingo de Bolsonaro. Depois da declaração para as redes sociais em que, naturalmente mais “amaciado”, manteve a referência a algumas das suas bandeiras, dirigiu-se à porta da sua cobertura e leu um discurso de uma outra pessoa. Agora já era a democracia e o respeito pelas liberdades, a união de todos os brasileiros. Numa palavra, um típico discurso de estadista a que estamos habituados em noites eleitorais. Faltou a referência ao seu opositor para tudo ficar “bonitinho”. Haddad também andou mal ao não cumprimentar Bolsonaro. A oposição tem de se unir e demonstrar uma irrepreensível ética republicana. Não digo que Haddad considerasse que o Presidente eleito era, agora, o seu Presidente, pois isso seria uma imensa hipocrisia e a um ex-candidato do calibre do ex-capitão, também eu, se fosse cidadão brasileiro, nunca consideraria meu Presidente.

As instituições funcionaram, o que não significa que o voto popular seja sempre avisado. E nisto não vai qualquer superioridade que de todo possuo, pois como disseram muitos críticos à assinalável movimentação lusa – que culminou em claros pronunciamentos do director do PÚBLICO, em editorial, ou na última edição do Expresso –, “para você é fácil que está aí sentado em Portugal e não enfrenta a grave crise económica e de insegurança que nós aqui vivemos na pele”.

Verdade insofismável, mas ninguém cerceia a liberdade de ninguém comentar a situação política de outro país, em especial de um pelo qual temos muito carinho, por nos ligarem inquebrantáveis laços históricos e pela preocupação com uma comunidade significativa dos dois países dos dois lados do Atlântico. Razão tem o Livre ao defender, sempre no respeito pela legislação vigente, a flexibilização de pedidos de atribuição de cidadania portuguesa a partir de Janeiro, não sendo por acaso que, nos últimos tempos, ocorreu um seu inusitado aumento.

Não me interessa agora reflectir sobre as causas que nos fizeram acordar hoje com Bolsonaro Presidente. Já aqui me referi a elas: foi mais – muito mais – o voto contra o PT que o voto no ex-capitão. Também não é verdade que Bolsonaro captou somente as classes altas brasileiras: se assim fosse, esse país seria um rico potentado. Um candidato que quase não debateu com ninguém, que votou com colete à prova de bala, que mostrou duas caras no momento da vitória. Alguém que está na vida política há 27 anos sem que se lhe conheça nenhuma importante iniciativa. Alguém que, quando aqui dele falei pela primeira vez, alguns amigos brasileiros me disseram que ele pertencia ao folclore político e que não tinha nenhuma chance. Retorqui com Trump e eis a fria realidade. Não terá tarefa fácil, ante um Congresso – mais que o Senado – balcanizado, embora o cheiro do poder seja sempre o maior afrodisíaco para pôr as convicções na gaveta. Mas formará governo.

Os freios e contrafreios, menos fortes que nos EUA, terão a sua prova de fogo. Se o PT não fizer um verdadeiro exame de consciência e se não procurar uma base alargada de oposição coerente, séria, não corrupta e firme, então o espaço de manobra de Bolsonaro será insuportavelmente amplo. Assinalam outros que o dito em campanha é sempre mais exagerado e que o Presidente eleito governará ao centro. Isto encerra alguma verdade, mas não para as atoardas inacreditáveis que Bolsonaro foi acumulando ao longo de décadas de vida política. O homem não acordou hoje com ideias diferentes do passado. Se tal acontecesse, seria um caso psiquiátrico grave.

Numa metáfora que nós, portugueses, bem conhecemos, diria que o rating democrático de Bolsonaro é “lixo” e que a perspectiva interna e externa deve ser de contínua vigilância.

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