E agora, Brasil?

Na oposição teremos as rivalidades e sectarismos de sempre. Do Planalto só se pode esperar o pior; do Congresso não se pode esperar nem sequer o menos mau.

Tal como esperado, o gigante caiu na escuridão da vaga fascizante que continua a varrer o mundo. Sim, democraticamente, porque democraticamente também se cometem erros — achar o contrário seria esperar que os humanos fossem deuses. E sim, com erros políticos também, porque o erro de entregar um país a um deputado preguiçoso e inútil como Bolsonaro não é um erro que acontece por acaso. É um erro que precisa de muitos erros anteriores para acontecer.

Quando se deu o impeachment de Dilma, escrevi que a atitude da direita brasileira, e do antipetismo em geral, se podia interpretar como a história de Macbeth na peça de Shakespeare: cada transgressão é cada vez maior, para encobrir a transgressão anterior. A história começa em 2014 com a recusa em aceitar a vitória de Dilma. Daí parte-se para um impeachment em cujas razões nem quem votou nele acreditou — porque Dilma não podia governar. Mas o problema é que Lula era popular, e então já diziam os mais avisados que Lula seria metido na cadeia, como foi — porque Lula não podia ser candidato. Como o PT, apesar disso, continuava popular, vendeu-se ao país a ideia de que o PT iria transformar o Brasil numa Venezuela — sem explicar por que raio o PT não o teria feito durante os 12 anos em que esteve no poder. E como Haddad se tornou também popular, primeiro com a ajuda de Lula, e depois pelos seus méritos próprios, entregou-se o país a Bolsonaro — porque nada, a não ser o delírio, pode salvar quem começou a sua narrativa como começou em 2014.

Do outro lado, é claro, estão os erros do PT — a sua soberba, a sua arrogância moral que já não é de hoje, que vem do tempo do mensalão justificado como sendo o preço a pagar para governar o Brasil. Com Dilma fora do poder e Lula preso, esse PT do aparelho partidário insistiu numa estratégia de negação da realidade que acabou por banalizar a negação da realidade do lado de lá. Se uns falavam de um Brasil em risco de se tornar uma Venezuela, outros insistiam em falar de um Lula candidato a partir da prisão e presidente com um processo por corrupção, injusto ou não, às costas. E assim, entre os dois campos dominantes no país, nenhum parecia aderir ao princípio da realidade, pelo menos até ao momento — tarde, demasiado tarde — em que um Haddad capaz de falar em nome da defesa da democracia a partir de uma posição de excelente preparação técnica e grande capacidade política foi finalmente assumido como candidato do PT.

Por que razão o PT assumiu Haddad tão tarde e mesmo então várias vezes lhe tolheu os movimentos? Porque há muito PT que prefere estar na oposição mas dominar o seu campo político do que aceitar governar como parte de uma frente republicana. E algo de semelhante se pode dizer das atitudes de Ciro Gomes (PDT), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e outros líderes políticos do que deveria ser o campo progressista brasileiro. À exceção de Guilherme Boulos (PSOL) e de Marina Silva (REDE), que se portaram com brilhantismo e elevação moral, as outras lideranças partidárias estiveram no segundo turno como se estivessem a preparar o pós-derrota — mesmo sabendo que isso significaria entregar o país a Bolsonaro sem a coragem de uma posição moral.

Se não tivesse sido pela auto-organização da sociedade civil nos últimos dez dias destas eleições, aliás, não teria havido sequer um sobressalto cívico a favor da democracia. É nesses brasileiros que deram tudo por tudo para travar a caminhada do fascismo no Brasil e, através do Brasil, nas grandes democracias do mundo, que devemos pensar agora. Eles foram uns heróis e merecem a solidariedade dos democratas dos outros países e regiões do mundo, a começar por Portugal e pela União Europeia. Não tenhamos dúvidas de que vão precisar dessa solidariedade (o facto de o consulado-geral de Portugal em São Paulo ter suspendido os pedidos de visto e nacionalidade até 1 de janeiro é um mau sinal político que precisa de ser corrigido). A partir desta derrota deveríamos constituir um movimento que funcione em rede pela defesa da democracia em todos os países de língua portuguesa.

E agora? O delírio não vai parar por aqui. Com um congresso cheio de políticos que foram eleitos na vaga de bajulação a Bolsonaro e emulação dos seus trejeitos autoritários, mas que será tão venal e ingovernável como sempre foi, só poderemos esperar que a corrupção e a insegurança continuem como já estavam, com a diferença de que a ocultação da corrupção e a incapacidade de resolver o problema da violência agora virá de um executivo com um Presidente fantoche dominado por militares e oportunistas. Na oposição teremos as rivalidades e sectarismos de sempre. Do Planalto só se pode esperar o pior; do Congresso não se pode esperar nem sequer o menos mau.

Resta a sociedade civil e os poucos políticos que se salvam nesta tragédia tropical. Um papel importante cabe aqui a Haddad, Boulos e Marina Silva. Eles foram os três candidatos presidenciais que souberam ver mais longe. Espero que Haddad aja com muita liberdade em relação ao seu partido, com a legitimidade que os milhões de votos que teve lhe dão, e que estenda a mão a Boulos e Marina Silva, e também a quem mais quiser vir de boa vontade construir a frente ampla do progresso e da democracia que o Brasil precisa. Sem tergiversar nos direitos cívicos. Sem ambiguidades na condenação de todas as ditaduras, sejam elas de “esquerda” ou de “direita”. Sem concessões ao taticismo partidário. Os bravíssimos brasileiros que tanto lutaram pela vitória contra o fascismo, nas mais difíceis das circunstâncias, não merecem menos do que isso.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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