Abrandar, um novo verbo para fazer cidade

As novas políticas de planeamento urbano e de mobilidade trazem consigo uma redução da velocidade de circulação. O que nem sempre implica maior gasto de tempo.

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No Porto está a aumentar o número de ruas de acesso automóvel condicionado Paulo Pimenta

Uma pequena cidade espanhola é notícia por esse mundo fora porque pôs os seus cidadãos a gostarem de andar a pé – tirando os carros das ruas. O Porto foi notícia por estes dias porque conseguiu um ano sem mortos por atropelamento, com medidas que retiram protagonismo aos automobilistas, na via pública. Seja pela nossa saúde, segurança ou mero prazer de viver num espaço urbano, abrandar é um verbo bem presente nas novas políticas de mobilidade.

Abrandar. Trata-se de um verbo leve, que pode andar a pé, de bicicleta, de scooter ou até mesmo de carro, quando os condutores se habituam e deixam de protestar contra a maré de zonas 30 e as passadeiras sobreelevadas que vão invadindo muitas cidades, seja à boleia do combate às alterações climáticas, por via da redução de emissões poluentes, seja em busca de um ambiente urbano mais amigo dos peões e dos negócios locais. Não queremos chegar atrasados ao emprego, ou à escola dos filhos, mas a transição para uma mobilidade sustentável passa, em muitas medidas que estão a ser postas em prática, por uma redução da velocidade a que se circula. E por uma revolução nas nossas mentalidades, como se pôde perceber num workshop recente sobre mobilidade partilhada que juntou, no Porto, representantes de várias áreas metropolitanas da Europa. 

O espaço

Elisabeth Oliveira vive há mais de uma década em Pontevedra. Francesa, filha de pais portugueses, já teve casa em quatro cidades de França e na Galiza, mas foi onde vive agora que a sua noção do espaço público mudou. Pontevedra é apontada como um exemplo europeu, por ter tirado todos os carros do casco antigo e limitado a 30 km a velocidade no interior de toda a cidade em volta desta generosa área pedonal. Quem anda a pé passou a ter centralidade, no espaço urbano, e isso mexeu com a cabeça dos automobilistas. “Aqui há muito mais respeito pelos peões”, explica, assumindo que, seja em Portugal, ou em Marin, cidade vizinha, onde dá aulas, a diferença é notória.

Enquanto na escola onde é professora os engarrafamentos são rotineiros, nas horas de entrega e recolha das crianças, por parte dos pais, em Pontevedra, acrescenta, isso não acontece. Ali foram criadas rotas seguras, nas ruas que levam ao estabelecimento de ensino, onde há pessoas contratadas pelo município para ajudarem as crianças a atravessar os cruzamentos onde há tráfego automóvel. Ou seja, nota, ali onde vive é normal crianças de sete ou oito anos irem para a escola a pé, o que já é uma mudança, e sem a companhia de um adulto. O resultado disto é uma redução incrível dos acidentes rodoviários e a inexistência de mortes por atropelamento, dado que, mesmo quando os choques acontecem, os efeitos são menos graves, nota esta mãe de três filhas.

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Quanto tempo demora andar a pé em Pontevedra? DR

Curiosamente, e apesar de ser uma cidade bastante maior, o Porto teve em 2017 um ano sem vítimas mortais entre os cerca de 300 atropelamentos que, em média, ali se registam. E o director do Departamento Municipal de Mobilidade e Gestão da Via Pública aponta, entre as explicações possíveis para este dado positivo, um conjunto de intervenções pontuais, nos pontos mais complicados, que, de maneiras diversas, visam estrategicamente impedir que os condutores se sintam reis e senhores do espaço público, obrigando-os a abrandar ou impedindo-os de estacionar em segunda fila perto das passadeiras. Que passaram, também elas, a estar melhor iluminadas.

Estes dados não surpreendem o investigador e consultor na área do planeamento urbano e da mobilidade, Robert Stussi, que, olhando para o caso de Pontevedra, refere que há estudos que apontam para a diminuição de acidentes em comunidades onde as crianças começam, mais cedo, a ganhar autonomia no percurso casa-escola. A razão é simples. Retirados da redoma do automóvel, estas pessoas têm, no geral, uma maior capacidade de percepcionarem os riscos, que existem sempre à sua volta. Por isso, nota este cidadão suíço que tem também nacionalidade portuguesa e vive em Lisboa, as cidades deveriam fazer um esforço de amenização do ambiente urbano, alargando algumas experiências interessantes restritas a centros históricos às zonas onde as pessoas vivem.

Stussi, que nesta terça-feira, num Open Day do PÚBLICO dedicado à mobilidade sustentável, mostrará alguns exemplos de boas práticas, considera que Pontevedra é, claramente, um caso a imitar, tal como, numa escala um pouco maior, Vitoria-Gasteiz, no País Basco, onde um arquitecto catalão, Salvador Rueda, desenvolveu um trabalho de transformação da cidade, olhada como um ecossistema urbano, a partir de grandes quarteirões, as super-manzanas, em espanhol, dentro das quais a velocidade de circulação automóvel foi reduzida.

O nome da fruta poderia ser diferente, por cá, mas Robert Stussi nota a falta de políticas integradas para o espaço, e para a distribuição modal da mobilidade urbana, que atribui à falta de planeamento que retirou serviços importantes, como hospitais, empresas, comércio, do centro das cidades - instigando os seus utilizadores a usarem o automóvel - e a uma falta de  articulação entre a arquitectura, o urbanismo e as engenharias, pela qual não deixa de responsabilizar os poderes políticos. Nas cidades europeias tidas como exemplo - Copenhaga, Amesterdão, entre outras - esta maneira de olhar para o espaço é partilhada do topo para toda a estrutura municipal, argumenta.

O tempo  

Fomos ensinados a repetir que tempo é dinheiro, e que tempo gasto no caminho é, por isso, um desperdício. Mas o arquitecto Manuel Paulo Teixeira, que depois de uma experiência longa no planeamento da rede do metro do Porto se dedica agora a costurar o espaço urbano da cidade, não tem dúvidas que é mais devagar que as pessoas chegarão, mais rapidamente, ao seu destino. Parece contraditória a ideia, mas experimentemos ir todos de carro por uma rua fora, em direcção a um lugar, para vermos o que acontece.

A experiência no metro deu a Manuel Paulo Teixeira uma ideia clara de que o tempo é muito importante para quem está a conduzir - porque, não podendo fazer mais nada nesses momentos, está a perder tempo - mas que no caso do transporte público, a experiência entra em linha de conta. Ou seja: se a um tempo razoável se juntar conforto e frequência, por exemplo, e se o conforto for alargado aos pontos de entrada e saída, a opção deixa de ser vista como um sacrifício, obrigatório para quem não dispõe de um carro, para se tornar parte de uma decisão racional. Por ser, também, mais barato.

Por isso, para além dos investimentos em frota e serviço a bordo, este arquitecto acredita que é preciso investir na cidade - nas faixas bus, nas paragens de autocarro e de metro, nos interfaces entre os vários modos e nos acessos a pé a tudo isto - para fazer os cidadãos esquecerem os minutos a mais que, eventualmente, uma viagem de transporte público lhes tome. E, da mesma forma, defende que é preciso continuar a mexer na cidade, de modo a criar condições de conforto para que mais percursos possam ser feitos de bicicleta e a pé. O que passa, por exemplo, pela política de arborização, de arranjo de passeios e de iluminação pública.

Pontevedra e Victória, nisso, venceram a luta. Na cidade galega onde mapas enormes nos explicam o tempo médio entre pontos de interesse, Elisabeth Oliveira ganhou, ela própria, uma nova percepção do espaço. “Havia percursos que me pareciam mais demorados do que efectivamente são”, assume, dando conta de que os seus vizinhos andam muito pela cidade. Na área pedonal é elevado o número de eventos de rua e o benefício para o próprio comércio local, que ganhou também com a opção, municipal, de conter a aprovação de grandes superfícies, na envolvente.

Já em Victória, cidade que depois de mexer no espaço urbano revolucionou, numa noite, todo o modelo de transporte público, para servir melhor as novas super-manzanas, este ganhou 70% de utilizadores num ano, roubados maioritariamente, aos carros. Fruto das restrições ao tráfego automóvel, a mobilidade a pé e de bicicleta aumentou também e muito, vinca Robert Stussi, considerando que estes exemplos seriam transferíveis para algumas cidades médias portuguesas. Com outras vantagens, que nos parágrafos acima pouco exploramos: o investigador lembra que está estudado que o tráfego automóvel, numa rua urbana, cria uma barreira entre vizinhos, diminuindo a convivialidade entre eles. Ou seja: abrandar, ou trocar o carro por outro meio de transporte, pode também ajudar a fazer amigos.

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