É bom entrevistar ditadores

Na Guiné Equatorial “praticamente não há torturas”, disse o ditador Teodoro Obiang, que, como sabemos, é praticamente nosso irmão.

Reserve as quartas-feiras para ler a newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Só agora consegui ver a entrevista do Presidente da Guiné Equatorial, Teodoro Obiang, à televisão pública de Espanha, o ex-colonizador. Por ser a primeira desde 1987, a TVE anunciou o “exclusivo” com alguma pompa.

São 14 minutos instrutivos, mas acabam mal. No fim, o jornalista cai numa armadilha, troca de papéis e responde a uma pergunta do entrevistado. O Presidente “preocupa-se com a imagem de autocrata ou até de ditador que tem na comunidade internacional?”, pergunta Luis Pérez. “Temos de analisar essa palavra: ditador. Para si, o que é um ditador?”, responde Obiang.

O jornalista podia ter dito “está mais do que estudado” ou “gostava de saber qual é a sua definição de ditador”, mas levou o desafio à letra: “É uma pessoa que assume todos os poderes do Estado.” Obiang encolheu os ombros e respondeu: “Eu não assumo todos os poderes deste país, os poderes estão nos órgãos do Estado, então...! Aqui respeitam-se as regras.”

É sempre fascinante ouvir ditadores. Entre meias-verdades e mentiras, revelam o extraordinário mundo em que vivem. Sobre se há tortura: “Penso que é uma especulação, não temos necessidade de torturar ninguém. Aqui, praticamente não há torturas”, responde Obiang. “O que quer dizer com ‘praticamente’?” “Eles têm de dizer o que entendem por tortura.” Sobre direitos humanos: “Aqui ninguém se queixa de que se violam os direitos humanos.” “A oposição queixa-se...”, contrapõe o jornalista. “Isso depende da oposição e, para nós, a oposição actual é insignificante.” Sobre a pobreza num país com petróleo e apenas um milhão de habitantes: “Quando cheguei [em 1979], não havia nenhuma universidade. Hoje temos uma e a segunda está quase a abrir.” Sobre as investigações judiciais contra o filho: “Ele tem de aprender as regras internacionais das viagens” e perceber “que no momento em que abandona a fronteira da Guiné Equatorial todo o mundo está a inspeccioná-lo e a segui-lo de perto”. Sobre o balanço dos 50 anos de independência, celebrados este mês: “A primeira etapa não foi nada agradável, mas a segunda, que começou quando eu cheguei, creio que você pode” constatar que “tem sido mais agradável”.

Não vale a pena fazer como Christiane Amanpour, da CNN, que em 2012 gozou com Obiang e comentou uma resposta com a exclamação “o senhor deve ser a única pessoa que acredita nisso, senhor Presidente!”. A entrevista da TVE mostra melhor quem é Obiang, o novo “irmão” da CPLP.

Mal acabei de a ver, fui reler os Estatutos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) à procura de mecanismos sancionatórios. Não há. Os estatutos da CPLP são de um optimismo absoluto. Declara-se que os Estados-membros respeitam a democracia e ponto. Não se prevê censura nem suspensão, muito menos expulsão.

É compreensível. Em 1994, quando os sete governos de língua oficial portuguesa (Timor ainda não era independente) fizeram a primeira recomendação formal para se organizar uma cimeira de chefes de Estado, Moçambique acabara de assinar um acordo de paz após 16 anos de guerra civil, Angola dava os primeiros passos do multipartidarismo, faltavam quatro anos para a guerra civil rebentar na Guiné-Bissau, Fernando Collor de Mello tinha sido afastado e Fernando Henrique Cardoso preparava a candidatura à presidência, São Tomé e Príncipe tinha uma Constituição democrática, Cabo Verde não preocupava ninguém. Tudo piorou antes de melhorar e piorar outra vez. Pelo caminho, ninguém antecipou que um país que não tinha laços com Portugal desde 1778 e onde ninguém fala português viesse a integrar o clube lusófono.

Em 2017, o Conselho de Ministros da CPLP aprovou uma revisão dos estatutos que acrescentou, pela primeira vez, “medidas sancionatórias” (Artigo 7.º): em caso de “violação grave da ordem constitucional num Estado-membro”, a CPLP fará “consultas” para tentar repor “a ordem constitucional” e o Conselho de Ministros pode aplicar “medidas sancionatórias”, que vão “desde a suspensão de participação” nas decisões “à suspensão total nas actividades da CPLP”. Ainda não está em vigor. A expulsão, de qualquer modo, não está prevista.

Também se percebe o dilema: como é que se sai da lusofonia? Ou se é lusófono ou não se é. Aceite a premissa da identidade e aceite a entrada da Guiné Equatorial na CPLP, só nos resta uma coisa: exigir o fim da pena de morte (o ensino do português é uma ilusão) e engolir os sapos do país que é “praticamente” nosso irmão.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários