A Bela Adormecida na discoteca de Vila Nova de Gaia

O Direito Penal vigente protege uma esfera de liberdade na área sexual que é igual para todos.

“Dois homens entram numa discoteca em Vila Nova de Gaia onde são atendidos, no bar, por duas mulheres. As horas passam, consomem bebidas, a discoteca encerra e as bar tenders oferecem-lhes vários shots, não obstante terem consciência de que já se encontram embriagados. Eles declaram-se indispostos, uma das mulheres acompanha um deles a casa, a outra ajuda o que vomita na casa de banho dos homens, segurando-lhe a testa com a mão... O homem, que usa uma lingerie provocante, fica inconsciente e a mulher molesta-o. A colega chega e tendo consciência do estado em que o homem está, molesta-o também. O homem acorda...” Quid juris?

Para além do relativo insólito do exemplo, uma vez que, em regra, os empregados de bar nas discotecas são homens, por se tratar de trabalho noturno e desempenhado num ambiente nem sempre seguro, é evidente que ninguém pode atentar contra a liberdade sexual de um homem que se encontre em situação de incapacidade acidental por ter ingerido álcool em excesso ou estar inconsciente por esse motivo.

A situação paralela, relatada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Junho de 2018, configura também, sem sombra de dúvida, uma situação de violência sexual. A mulher de 26 anos não consentiu, nem o poderia fazer atento o estado de embriaguez em que se encontrava, em ter relações sexuais com os empregados do bar. Se analisarmos o Código Penal Português de 1982 facilmente verificaremos que a factualidade descrita parece corresponder à prática do crime de violação ou de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência. Também a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul em 2011 e assinada e ratificada pelo Estado português, determina que a violência contra as mulheres configura uma “violação dos direitos humanos” e “uma forma de discriminação contra as mulheres”, comprometendo-se os Estados a criminalizar quem intencionalmente praticar atos de natureza sexual não consentidos com outrem.

A discussão jurisprudencial em torno da qualificação jurídica dos atos descritos no acórdão, da moldura penal que lhes é aplicável e da aplicação efetiva da correspondente pena, parece ter subjacente um lastro ético-jurídico de vários séculos no nosso país. Uma senhora bem comportada não frequenta uma discoteca até depois de esta encerrar, não bebe shots de forma a perder o controlo do seu comportamento e todo o sentido de decoro, não aceita bebidas de empregados de balcão, não usa calções para sair à noite... Se o fizer, arrisca-se a que o seu comportamento seja interpretado como um convite à prática de atos sexuais não consentidos por parte dos homens que nela se encontrem. Ou: uma senhora não molesta um homem em qualquer situação e nem lhe ocorre fazê-lo se ele estiver inconsciente...

A Lei Penal vigente até ao início da década de oitenta do século passado refletia estas conceções distinguindo entre mulheres “honestas” e “caídas”, entre as mulheres sérias, dignas de cabal proteção jurídica, e as outras, a quem era dispensada menor proteção por, no entendimento do legislador, não serem dela dignas. Assim, por exemplo, na versão de 1886 do Código Penal Português, os crimes de “atentado ao pudor, estupro voluntário e violação” eram punidos com penas diferentes caso a mulher fosse ou não virgem.

O atual Direito Penal não impõe uma moral sexual aos cidadãos portugueses que são titulares do direito à liberdade e autodeterminação sexual configurando crime a prática de atos sexuais não consentidos. A liberdade é tutelada mesmo no âmbito do casamento, sendo punida a violação conjugal.

Essa liberdade é igualmente protegida independentemente do estatuto socioeconómico e do comportamento sexual da pessoa. O desvalor ético-jurídico da conduta de quem constranger outrem a praticar ato sexual não pode ser diferente se uma mulher se encontrar a consumir álcool numa discoteca às quatro horas da manhã, ou se estiver a dormir, com sono induzido por barbitúricos, na sua casa da Foz e for molestada por um homem que entrou pela janela do quarto que dá para o jardim... Em ambos os casos, a pena aplicável e a decisão judicial de a suspender obedecem às mesmas normas. Ou seja, a fundamentação da decisão da suspensão da pena alegando, como é feito na sentença em apreço, que, em relação aos acusados, “(...) não se evidenciam particulares fatores de risco associados a problemas comportamentais que revelem disfuncionalidade na vertente afetiva ou dificuldade de autocontrolo dos respetivos impulsos, que urja acautelar”, causaria perplexidade em qualquer dos casos.

O Direito Penal vigente protege uma esfera de liberdade na área sexual que é igual para todos, cuja existência se funda no respeito pela dignidade e liberdade de cada um(a), não podendo ser seletivamente aplicado, em função de uma pretensa e inexistente “moral de costumes” dominante que consciente ou inconscientemente queiramos aplicar.

Uma mulher inconsciente é sempre uma Bela Adormecida, a tratar com o maior respeito, seja qual for o comportamento que tenha tido antes de adormecer. E o mesmo vale para o Príncipe, se tiver sido ele a picar-se no fuso da roca de fiar enfeitiçado.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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