Governo vai alterar legislação sobre crimes sexuais

Ministério da Justiça reconhece que é preciso alterar o Código Penal, "no tocante aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual". Mas não se compromete com prazos. Associações que trabalham com vítimas têm pedido mudanças, como o alargamento do prazo para denunciar crimes de violação.

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Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade Daniel Rocha

O Governo está a planear alterar as leis sobre crimes sexuais, de forma a cumprir com o disposto na Convenção de Istambul — o tratado do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica —, mas ainda não explica que mudanças estão a ser estudadas.

A informação foi avançada nesta quarta-feira pela secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro. “As autoridades públicas portuguesas estão disponíveis para operar uma [revisão], reconhecendo esta necessidade de alterar o Código Penal no sentido de melhor acomodar aquilo que são os pressupostos da Convenção de Istambul nestas matérias”, disse a governante.

Esta posição, revelou, foi “articulada em sede de Governo”, entre a tutela da Igualdade e o Ministério da Justiça, no âmbito do processo de avaliação da aplicação da Convenção de Istambul, ratificada por Portugal em Fevereiro de 2013. Trata-se de uma resposta às recomendações do comité GREVIO, o grupo de peritos do Conselho da Europa, “cujas posições foram positivas para Portugal, mas que recomendava essa questão da revisão do crime de violação”, explicou Rosa Monteiro.

A governante falava a jornalistas depois da apresentação da 4.ª Conferência Regional de alto nível da União para o Mediterrâneo (UpM) sobre o empoderamento das mulheres, que trará a Lisboa, a 10 e 11 de Outubro, um conjunto de governantes e ONG da União Europeia e outros países do Sul da Europa, Norte de África e Médio Oriente.

A intenção foi confirmada pelo Ministério da Justiça, que em resposta ao PÚBLICO por email, disse que “projecta modificar o Código Penal, no tocante aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, à luz da Convenção de Istambul e das recomendações do GREVIO”. No entanto, também não revela quais foram as recomendações do comité neste campo, que mudanças estão a ser estudadas ou os prazos para o arranque deste processo.

O que diz a Convenção de Istambul (CI) sobre crimes sexuais? No artigo 36.º, referente à “violência sexual, incluindo violação”, os países signatários comprometem-se a adoptar as medidas necessárias para assegurar a criminalização de actos sexuais sem o consentimento da vítima. “O consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes”, refere o artigo, sublinhando-se em seguida a importância de assegurar que as medidas “também se aplicam a actos praticados contra os cônjuges ou companheiros ou contra os ex-cônjuges ou ex-companheiros”.

A legislação portuguesa não coloca explicitamente a falta de consentimento como central para considerar que houve crime de violação; refere antes que é preciso haver “constrangimento” de outra pessoa a actos sexuais, exigindo algum nível de violência ou ameaça para que a pena aplicada seja a mais grave.

A CI versa sobre várias formas de violência de género, caracterizada como aquela que atinge as mulheres de forma desproporcional ou especificamente por serem mulheres. Em causa, além da violação e do abuso sexual, estão a violência doméstica, o assédio sexual no trabalho e nas ruas, práticas nefastas como os casamentos forçados e a mutilação genital feminina, entre outros. Além da protecção das vítimas, a CI aposta ainda na prevenção destas formas de violência, nomeadamente através da educação livre de estereótipos de género.

Discussão pública

Nesta terça-feira, a secção portuguesa da Amnistia Internacional declarou, em comunicado, que é “fundamental que Portugal alinhe a legislação sobre violência sexual com os padrões internacionais de direitos humanos, como já foi recomendado pelo Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres [CEDAW] ao Estado Português, em 2015”.

A actual “discussão pública generalizada sobre a violência sexual de género”, como a caracteriza a Amnistia, foi gerada por uma decisão do Tribunal da Relação do Porto, recentemente conhecida, que confirmou penas suspensas a dois homens por abuso sexual de uma mulher numa discoteca de Gaia. A Relação do Porto justificou a recusa em transformar em prisão efectiva a pena suspensa decidida anteriormente no tribunal de Gaia argumentando que “a culpa dos arguidos situa-se na mediania, ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e num “ambiente de sedução mútua”.

A decisão desencadeou protestos públicos em pelo menos três cidades, assim como acusações de postura misógina dirigidas aos magistrados responsáveis pelo acórdão. A Amnistia Internacional defende que o “Governo português, bem como os demais órgãos de soberania, devem ouvir as vozes da discussão que ocorre no contexto nacional”.

A avaliação da aplicação em Portugal da Convenção de Istambul, que começou em meados do ano passado, deverá estar completa até ao final do ano. Em Março, o comité GREVIO visitou o país para encontros com governantes e ONG e para algumas visitas no terreno, um diálogo que resultou num relatório preliminar de avaliação enviado ao Governo no Verão. As recomendações finais serão conhecidas até Janeiro de 2019.

Entretanto, além das garantias dadas agora pelo Ministério da Justiça, está previsto na actual Estratégia Nacional para a Igualdade um “estudo de revisão da legislação em matéria de violência contra as mulheres e violência doméstica, em conformidade com a Convenção de Istambul”, que deverá ser produzido até ao final de 2019.

Em 2015, houve um conjunto de alterações legislativas para dar cumprimento ao disposto na CI, entre as quais alterações nos crimes de violação, coacção sexual e importunação sexual. Contudo, em Maio deste ano, a Amnistia Internacional divulgou uma análise que refere Portugal como um dos países europeus que “ainda não logrou conformar adequadamente a legislação interna com a Convenção de Istambul”.

A conclusão não é nova. Já em Outubro do ano passado, por altura do início do processo de avaliação do GREVIO a Portugal, várias ONG tinham alertado para estas falhas.

A Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ), que apresentou um relatório individual com considerações exclusivamente jurídicas, referia, no que toca à definição de crimes sexuais — nomeadamente os crimes de coacção sexual e de violação — que os elementos que caracterizam o crime na lei não dão “a relevância devida ao conceito de ausência de consentimento da vítima como este está definido na Convenção”. Na lei portuguesa, descrevem, continua a ser exigido o ‘constrangimento’ da vítima para se considerar que existiu violência sexual, além de não terem sido abolidos “os requisitos de violência, ameaça grave ou tornar a vítima incapaz de resistir”.

Crime público?

Já no relatório elaborado por um grupo de trabalho alargado de ONG, coordenado pela Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV) e a Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), as organizações exigiam enquadramentos legais mais pesados para todas as formas de violência contra as mulheres, e sublinhavam a necessidade de efectivar as penas. As ONG alertam ainda para as lacunas na recolha de dados, que muitas vezes não estão desagregados por género — não permitindo demonstrar a desproporcionalidade destes crimes —, o que dificulta também a produção de conhecimento sobre estas temáticas.

No que toca à violência sexual, mais especificamente, as ONG pediam ainda que fossem criadas mais respostas específicas para as sobreviventes de crimes sexuais, nomeadamente centros de crise para atendimento de vítimas de violação e apoio para situações de trauma. Actualmente, Portugal tem apenas três centros de apoio especializado em violência sexual, dois dirigidos a mulheres (em Lisboa e no Porto) e um para homens.

Considerando que “a justiça tem sido muito injusta com as vítimas de violência sexual”, Ilda Afonso, coordenadora do centro de apoio às vítimas de violência sexual da UMAR, no Porto, afirma que quaisquer alterações legais deveriam incluir o alargamento do período durante o qual as vítimas podem apresentar queixa e que é neste momento de seis meses desde a ocorrência. “Muitas vezes, nestes primeiros seis meses, as vítimas nem sequer conseguem falar sobre o assunto quanto mais denunciá-lo às autoridades. Às vezes demoram esse tempo a tentar encontrar uma forma de verbalizar o que lhes aconteceu”, sublinha. Também Margarida Medina Martins, do centro de crise da AMCV em Lisboa, considera que “os crimes de violência sexual não deviam prescrever”.

Ilda Afonso considera mesmo que a violação e a violência sexual devem passar a ser um crime público, tal como o da violência doméstica, uma ideia que tem estado em debate no seio da UMAR. “Na prática, isso faria com que a actuação das autoridades não dependa da queixa da vítima”, explica, para sublinhar que “isso pode ser muito importante nos casos em que a vítima não consegue pedir ajuda relativamente a um crime a que outros tenham assistido”.

Um exemplo: no ano passado, na Queima das Fitas do Porto, “foram divulgadas imagens de uma jovem inconsciente a quem um amigo ou namorado enfiava as mãos por dentro das calças, dentro do autocarro em que seguiam, com os amigos à volta a acharem piada àquela brincadeira; a jovem não deu consentimento para que se portassem assim com ela, e com as imagens em todo o lado, ficou envergonhada e com culpa e o que mais queria era que a deixassem em paz", diz Ilda Afonso. "Não apresentou queixa. Se o crime fosse público, qualquer pessoa que seguisse no autocarro tinha oportunidade para o denunciar."

Em conversa com o PÚBLICO, Margarida Medina Martins foi mais cautelosa. Lembrando que o tema não gera consensos também dentro da AMCV, reconhece que a passagem a crime público daria visibilidade ao tema, mas quem pagaria o preço dessa transição — em particular se se mantiver a situação actual, com falta de profissionais especializados, ou sequer sensibilizados — seriam as vítimas. “Vão cair em instituições que não só não sabem de violência doméstica, como sabem ainda menos da violência sexual. E isto é um preço muito alto para sobreviventes.” Com Natália Faria

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