Por que acontece tantas vezes o impensável?

Só evitamos o impensável se começarmos a admitir mais vezes que o impensável não é o impossível.

Há vários tipos de "Brexit", de mau a péssimo, e um tipo impensável: o "Brexit" sem acordo. E no entanto esse é o único "Brexit" que temos como certo. Como é que se chegou aqui?

Para entender, é preciso ir um ano e meio atrás e pensar no que estava na carta que o Governo de Theresa May enviou à União Europeia em março de 2017. Tudo estava já lá. Essa carta acionava o artigo 50 do Tratado de Lisboa que permite a um Estado-membro sair da União Europeia. É preciso então seguir o fio à meada e ver o que diz esse artigo 50. Resumidamente, o artigo 50 explica que qualquer estado pode sair da UE quando desejar e que para tal deve notificar a UE (a notificação foi a tal carta). E depois diz o mais importante: “os Tratados deixam de ser aplicáveis ao Estado em causa a partir da data de entrada em vigor do acordo de saída ou, na falta deste, dois anos após a notificação, a menos que o Conselho Europeu, com o acordo do Estado-membro em causa, decida, por unanimidade, prorrogar esse prazo”.

Por detrás desta linguagem um pouco árida, isto significa que o direito europeu deixa de se aplicar ao país que saiu. Natural, pois era mesmo essa a ideia. Só que o “direito europeu” está na base de muita coisa que nós damos por adquirida. E aqui começam os problemas.

Um produto alimentar produzido em Portugal é submetido a diversos testes de qualidade e controle de agências portuguesas. Pela mera ação do direito europeu, essas agências portuguesas são reconhecidas por todas as agências de todos os países da UE como se fossem a sua agência doméstica. Por isso o alimento produzido em Portugal pode ir parar à Estónia sem necessidade de mais nenhum teste. O mesmo processo multiplica-se em dezenas ou centenas de áreas: aplica-se o “acervo comunitário” para que se estabeleça um regime de “confiança mútua” em que, sei lá, a ASAE portuguesa seja reconhecida pelas outras 27 homólogas.

O significado de “o direito europeu deixar de se aplicar ao Reino Unido”, neste exemplo muito específico, significa que a ASAE britânica, ou as suas equivalentes, deixam de estar na lista de agências europeias e que o Tribunal de Justiça da UE deixa de dirimir conflitos sobre interpretação do acervo comunitário que envolvam um estado, o Reino Unido, que já não está coberto por eles. Confusos? Tentarei ser então mais direto. O que isto significa é que um funcionário da alfândega algures em Roterdão vai olhar para um barco ou um camião oriundo do outro lado da Mancha e dizer que aquele produto vai ter de ser inspecionado por uma agência da UE. E isso demora tempo e implica gastos e papelada. Multiplique-se por todos os outros camiões que estão na fila para saírem do Reino Unido, e pense-se que não há parques de estacionamento de tamanho suficiente para os segurar, e pense-se em como alguns dias de auto-estradas bloqueadas põem um país de pantanas.

Este foi só um exemplo. O mesmo vale para os aviões que aterram em espaço europeu: precisam de estar cobertos pelo direito europeu, ou por um acordo com um país terceiro. Se não houver nem uma coisa nem outra, dir-me-ão que “os aviões não vão deixar de voar”. E eu dir-vos-ei que é duvidoso: um avião é uma coisa muito séria para voar sem cobertura jurídica. E os problemas repetem-se em muitas outras áreas. Até, inacreditavelmente, na energia atómica. O Reino Unido votou para sair da UE, mas não votou para sair da Euratom, uma instituição diferente que centraliza toda a produção e distribuição de urânio nos países da UE. Só que Theresa May incluiu a Euratom na sua carta. E portanto…

Portanto, no dia 29 de março do ano que vem cumprem-se dois anos sobre o envio da carta. O relógio está a contar, e a única certeza que temos é que, se não houver acordo até lá, o direito vigente deixa de se aplicar, ponto. As consequências são tão impensáveis que quase toda a gente diz sempre que “é claro que eles vão chegar a acordo”. E ambas as partes continuam a pensar que do outro lado está alguém que não pode viver sem um acordo — e portanto sentem-se à vontade para fazer exigências que, acham, a outra parte não pode deixar de aceitar.

Aquilo de que se esquecem é que, regressados a suas casas, os chefes de governos têm partidos e opiniões públicas que não querem aceitar tais exigências — em grande medida porque não acreditam que o impensável possa acontecer.

Mas atentemos nisto: uma saída sem acordo é neste momento a única coisa que está certa desde que o Reino Unido enviou a carta.

O impensável acontece porque mentalmente o empurramos para o fim da nossa lista de possibilidades — mesmo quando o impensável deveria ser o nosso ponto de partida. Isso vale para o "Brexit", vale para a guerra comercial entre a China e os EUA, vale para a crise ecológica das alterações climáticas. Só evitamos o impensável se começarmos a admitir mais vezes que o impensável não é o impossível.

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