Duas incoerências não fazem uma coerência

se votar contra o artigo 7 no caso húngaro fosse combater o fascismo, como se explica que tenham votado também contra o artigo 7 todos os partidos fascizantes no Parlamento Europeu?

Na semana passada o PCP votou no Parlamento Europeu contra a ativação do artigo 7 previsto no Tratado da União Europeia para casos de violação grave e reiterada dos princípios do Estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais por um Estado-membro da UE. Houve quem aventasse que tal posição era ao menos coerente com as posições do PCP em relação à questão da ingerência em assuntos internos de países soberanos. Infelizmente, tal interpretação não é justificada pelos factos. E não, não é preciso ir até à invasão da Checoslováquia em 1968 e da própria Hungria em 1956 para lembrar que a doutrina marxista-leninista costumava basear-se no princípio de que só há ingerência quando o povo de um determinado país já exerceu o seu direito à auto-determinação contra a burguesia nacional.

Não é preciso, porque a ativação do artigo 7 em relação ao governo da Hungria nada, mas mesmo nada, tem a ver com ingerência.

Para entender o artigo 7 é preciso ir atrás e ler o artigo 2 do Tratado da União Europeia, que diz o seguinte: “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias”. Pode considerar-se que o problema deste artigo é ele não ser levado a sério — mas nesse caso ainda há menos justificação para se votar contra um relatório que pretende precisamente levar o artigo 2 a sério. O que não se pode é considerar que o artigo 2 seja uma imposição de Bruxelas aos Estados-membros: pelo contrário, ele foi redigido, emendado, e ratificado pelos Estados-membros. Os documentos históricos dizem-nos mesmo que a Hungria foi dos Estados que mais intervieram na redação desse artigo ainda antes de entrar na UE, que só entrou na UE com base nele, e que foi o primeiro país da UE a ratificá-lo.

Onde está então a ingerência? Lembre-se que a ingerência é a interferência em assuntos que são da ordem interna dos estados. Mas o artigo 2 é uma coisa muito diferente: um compromisso de política externa que a Hungria assinou com todos os outros países da UE. Se eu enviar uma carta de advogado alertando para o facto de que o meu sócio, o meu senhorio ou o meu patrão estão a violar um contrato que têm comigo, e avisando que se essa violação continuar eu denunciarei o contrato, estarei a interferir na vida privada deles? Evidentemente que não. Pelo contrário, deixar que uma parte viole um contrato impunemente é que tem por efeito degradar e diminuir a soberania de todos aqueles que da outra parte continuam a respeitá-lo.

O próprio PCP, aliás, não votou contra o meu relatório de há cinco anos que determinava que os desvios do governo húngaro aos princípios do artigo 2 eram de tal forma graves que, se não fossem revertidos, eles resultariam certamente numa aplicação do artigo 7 — o que acabou por confirmar-se. O PCP, na altura, absteve-se. Como pode explicar-se que, cinco anos depois, em vez de ao menos manter a abstenção, o PCP vote contra? A situação na Hungria melhorou? Não. O judiciário húngaro está cada vez mais politizado, os estrangeiros cada vez mais perseguidos e a liberdade de ação política cada vez mais ameaçada. A resposta do artigo 7 a isto não está em — como se ouve erradamente por aí — sanções económicas contra a Hungria, mas em suspensão de prerrogativas de que o governo húngaro usufrui em virtude de um contrato que não respeita. Votar contra o artigo 7 significa, por exemplo, admitir que os tribunais e autoridades portuguesas continuem a cumprir com decisões dos tribunais do sr. Orbán (os tribunais nacionais são a primeira linha de aplicação de direito europeu) como se estes não estivessem sob uma extrema politização.

Por mais voltas que se dê, não se consegue entender o voto contra do PCP hoje, em particular à luz da abstenção de há cinco anos.

Finalmente, num artigo que saiu ontem no PÚBLICO, o eurodeputado do PCP João Ferreira explica que são as políticas da UE que estão na origem dos desenvolvimentos fascizantes na Hungria e em outros países. O ponto não resiste a uma sucinta análise: é a UE que está na origem de Bolsonaro no Brasil ou de Trump nos EUA? Claro que não. Mas já ouço a objeção: trata-se das políticas que são levadas a cabo na UE e também noutras regiões do mundo. Se assim for, então ainda menos se justifica um voto ao lado do governo húngaro, pois o que é preciso é lutar contra essas políticas no Brasil, nos EUA e na UE também — pelo menos, enquanto dela fazemos parte. Ora, se votar contra o artigo 7 no caso húngaro fosse combater o fascismo, como se explica que tenham votado também contra o artigo 7 todos os partidos fascizantes no Parlamento Europeu?

O PCP estava errado na sua antiga definição de ingerência, que punha nas mãos de uma potência exterior a definição de se um povo estava auto-determinado e em condições de “pedir” uma intervenção militar externa. Infelizmente o PCP optou agora por uma definição de ingerência na qual uma potência exterior pode violar os termos do contrato que tem para connosco sem que possamos sequer valer-nos do artigo do contrato que foi previsto para casos de incumprimento. Duas incoerências não fazem uma coerência.

(A propósito: é de elementar justiça reconhecer que o PSD e o CDS estiveram bem ao votar a favor do mesmo Relatório Sargentini sobre a Hungria. O que é agora incompreensível é que aceitem ficar no mesmo partido europeu de um governo húngaro que, acabaram de reconhecer, viola de forma grave e reiterada os valores do estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais. É de se esperar que ajam de forma clara e urgente para acabar com essa outra incoerência.)

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