Os subsistemas de saúde são necessários?

Há insuficiências importantes nos esquemas de financiamento do acesso a cuidados de saúde fora do SNS.

Os progressos conseguidos em matéria de saúde em Portugal são generalizadamente reconhecidos, bem como o papel insubstituível do Serviço Nacional de Saúde (SNS) nesta evolução. Todavia, subsistem carências importantes que decorrem, em grande medida, de profundas alterações das necessidades da população em saúde e bem-estar. Este é, ou deve ser, o pano de fundo de toda a discussão sobre as políticas de saúde, designadamente as que dizem respeito à revisão em curso da Lei de Bases da Saúde.

Atualmente, cerca de 40% da população portuguesa beneficia já de esquemas complementares ao SNS de prestação de cuidados, aí buscando um tipo de cuidados que o sector público não providencia aos níveis desejados.

Compreende-se. A prestação de cuidados organizada pelo Estado é especialmente apta a lidar com emergências e condições patológicas agudas, bem como a garantir cuidados médicos “pesados” nas situações de agudização das doenças prolongadas, crónicas e terminais. Fazendo-o diretamente ou atuando através de serviços contratualizados com os prestadores privados e do sector social, o SNS dá aí bom uso aos nossos impostos. Todavia, é bem menos performante na dispensa de cuidados primários e altamente especializados (dentários, medicina estética, etc.) tal como na prevenção, áreas que justamente estão em grande desenvolvimento devido às novas atitudes das populações em matéria de saúde e bem-estar, o que cria uma grande procura por prestações fora do SNS, as quais pedem soluções de financiamento pelos interessados ao alcance das suas bolsas.

Sucede que há insuficiências importantes nos esquemas de financiamento do acesso a cuidados de saúde fora do SNS existentes, designadamente os seguros de saúde. Quase todos eles apresentam propostas de valor pouco atrativas ou mesmo inacessíveis para os segmentos da população de menores rendimentos e para as pequenas e médias empresas (PME) que gostariam de fornecer proteção de saúde aos seus colaboradores. Resultado: as exclusões de atos, de episódios clínicos e de categorias de beneficiários idosos e doentes crónicos são numerosas, criando grandes constrangimentos à satisfação das necessidades por via da medicina convencionada. Além disso, deixam quase sempre de fora cuidados continuados, serviços não médicos de bem-estar e medicinas alternativas, cujo mérito é hoje sobejamente reconhecido na saúde.

Tudo isto cria oportunidades de desenvolvimento de novas soluções de acesso a cuidados fora do SNS com potencial impacto social e de interesse público. O subsistema de assistência na saúde dos funcionários civis do Estado (ADSE) é o principal exemplo “pagador” de acesso a medicina convencionada, que deve inspirar o desenvolvimento de tais soluções, tanto pelos seus pontos fortes como pelos menos positivos a evitar.

As soluções desejáveis deverão ser centradas na família como beneficiário-alvo, propondo-lhes coberturas de risco flexíveis em modo “poupança-proteção” acessível e visando sobretudo as que têm maior apetência pela prevenção e visão de poupança de longo prazo, bem como os profissionais independentes ou cofinanciados pela entidade empregadora, especialmente, das médias, pequenas e microempresas, e das instituições do sector social.

Uma proposta de valor atrativa a veicular por estas novas soluções deve responder a algumas exigências fundamentais. A primeira é a abrangência de todo o ciclo de vida, saindo da lógica imediatista do ato clínico e do episódio singulares e propondo a gestão da saúde pelo bem-estar, os rastreios e a detecção precoce de situações de risco. As novas soluções devem evitar a agudização de eventuais patologias crónicas, fornecendo incentivos adequados às práticas preventivas e aos rastreios, em consonância com longos períodos de contribuição sem penalização das fases terminais das nossas vidas, evoluindo a prazo para o conceito de value-based healthcare.

Tal exige quotizações certas, moderadas e alisadas ao longo da vida contributiva do beneficiário, mais ao alcance das famílias portuguesas de baixos e médios rendimentos. Deverá também fugir-se à imposição de limites de capitais de responsabilidade, recorrendo privilegiadamente a modos alternativos de gestão do risco, com outras ferramentas de mitigação deste.

As novas soluções devem ser obviamente otimizadas pela transformação digital, através da virtualização, digitalização e inteligência artificial.

Seria de extrema importância que a futura Lei de Bases da Saúde conferisse dignidade a este tipo de soluções complementares, as quais são mais do que normais seguros de saúde e deverão ser reconhecidas como subsistemas de saúde, financiando o acesso aos cuidados fora do SNS à semelhança da ADSE. Os impactos positivos que o desenvolvimento destes subsistemas terão, aliviando a pressão sobre o SNS, justifica a sua equiparação à ADSE em termos de fiscalidade.

Não foi esta a opção do projeto submetido á discussão pública, o qual apenas menciona os “seguros privados de saúde” na sua Base XXX, sendo omisso sobre outras soluções “pagadoras” para acesso a cuidados fora do SNS, que não são reconhecidas como parte inteira do sistema de saúde, tal como vem definido na Base XXVII.

Os esquemas de acesso a cuidados convencionados de natureza associativa e de iniciativa socioprofissional são cada vez mais importantes e não deixarão de se desenvolver por iniciativa mutualista ou outra. Tal como a Terra se movia apesar da negação imposta a Galileu, também eles se movem porque a procura para eles existe e quer ser satisfeita.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Cidadania Social – Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais – www.cidadaniasocial.pt

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