Neto de Moura e o corporativismo dos juízes

O processo só na aparência é sobre denúncias caluniosas. Ele é, no seu âmago, um conflito de “estatutos” – e uma forma de pôr no lugar quatro GNR que se atreveram a enfrentar um “meritíssimo juiz”.

Na semana passada, o juiz Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), escreveu no PÚBLICO um texto (“Os factos de uma história que se conta por aí”) em resposta a várias notícias e artigos sobre a vitória que o juiz Joaquim Neto de Moura obteve no Tribunal da Relação de Lisboa, num conflito que o opõe a quatro GNR que o apanharam a circular num carro sem matrícula, em 2012. Absolvidos em primeira instância, a Relação condenou os militares pelo crime de denúncia caluniosa e falsidade de testemunho. Escrevi sobre isso no artigo “Senhoras e senhores, o juiz Neto de Moura”.

Um elogio: acho óptimo que o presidente da ASJP intervenha publicamente e tenha disponibilizado o acórdão no site da associação. No domínio da transparência, cinco estrelas. Quanto ao essencial do texto, não posso acompanhar as suas interpretações. Escreve Manuel Soares: “O juiz circulava sem matrícula por alguma razão esquisita? Não.” A razão não será esquisita: as placas tinham sido roubadas e dera conta disso à polícia. Mas continua a ser esquisito circular numa via pública sem elas. Escreve Manuel Soares: “O juiz desobedeceu e fugiu à polícia? Não.” Os militares afirmam que foi mandado parar e não parou; o juiz diz que não viu. O caso resume-se a isso. Não fosse o bate-boca que se seguiu e ninguém andaria a entupir tribunais com uma ocorrência ridícula. Ponto assente: a primeira ilegalidade foi cometida por Neto de Moura.

Escreve Manuel Soares: “Os militares da GNR apresentaram uma denúncia falsa e mentiram sob juramento, para que o juiz fosse punido disciplinarmente? Sim.” Essa é a conclusão (esticadíssima, diria eu) da Relação. A primeira instância achou diferente. Os militares vão recorrer. A decisão final compete ao Supremo. Escreve Manuel Soares: “O juiz da Relação de Lisboa tinha sido colega de trabalho do juiz queixoso? Sim. Neste caso, deu-lhe razão? Sim (em conjunto com outro juiz). Num caso anterior, que resultou dos mesmos acontecimentos, também lhe tinha dado razão? Não (em conjunto com outra juíza).” Pelos vistos, o presidente da ASJP acha normal um juiz desembargador, que assinou acórdãos com Neto de Moura, andar a decidir processos em que um colega está envolvido. É normal? Espero que não.

Por fim, escreve Manuel Soares: “Este caso tem alguma coisa a ver com o caso do acórdão muito comentado sobre violência doméstica, do mesmo juiz? Nada.” Discordo. O caso revela como um juiz pode ser protegido, mesmo quando a sua actuação revela uma escassez flagrante de bom senso. Leia-se o acórdão que a ASJP disponibilizou. A certa altura, os desembargadores escrevem: “Abra-se aqui um parêntese para frisar que o ressabiamento entre o arguido [um militar da GNR] e o ora assistente é de tal ordem que, mesmo em plena audiência de julgamento, aquele trata a julgadora como ‘meritíssima juíza’ e o assistente como ‘sr. Joaquim’, apesar de ter pleno conhecimento do seu estatuto profissional.”

Este parêntese é mais eloquente que todo o raciocínio jurídico exposto no acórdão, porque revela exemplarmente os preconceitos de quem o está a escrever. O processo só na aparência é sobre denúncias caluniosas. Ele é, no seu âmago, um conflito de “estatutos” – e uma forma de pôr no lugar quatro GNR que se atreveram a enfrentar um “meritíssimo juiz”. Não há melhor demonstração da lógica corporativa do que aquela frase ridícula. Seria excelente que o presidente da ASJP pudesse dizer-nos o que pensa sobre ela.

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