O Dia Mundial da Liberdade de Pensamento visto por uma cientista

Liberdade (substantivo feminino, do latim libertate): capacidade própria do ser humano de escolher de forma autónoma, segundo motivos definidos pela sua consciência (in Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

Das várias definições de “liberdade” guardo a que transcrevi porque me transporta para o lado mais puro de ser cientista. Poder pensar segundo a sua vontade. Extrapolando, para além de pensar: escolher, fazer, investigar segundo a sua vontade e a sua consciência.

“Eu sou eu e a minha circunstância”, tal como aprendemos com Ortega y Gasset, e portanto até a nossa liberdade tem condicionantes, sejam elas fruto da época e lugar em que vivemos, sociopolíticas e económicas, ou mesmo a ética e a própria consciência.

A liberdade científica não é exceção e a força das circunstâncias também vai dirigindo o leme. Se não fossem as forças imperiais e o capitalismo, provavelmente Cristóvão Colombo nunca teria chegado à América, nem Neil Armstrong teria chegado à Lua. Robert Oppenheimer, para muitos o “pai” da bomba atómica, veio mais tarde, no pós guerra, em virtude da sua consciência, usar o seu poder para conter a competição por armas nucleares entre diferentes potências mundiais.

Ressalva feita, foco-me no sabor da mais purista da liberdade intrínseca da qual os cientistas gozam pela associação permanente que vivem com a inovação e criatividade no exercício da sua profissão.

Esta é uma das arestas que considero mais bonitas na investigação científica praticada na academia: a liberdade para se estudar e explorar o que se quer. Pode não acontecer o mesmo quando se é cientista numa empresa – cuja missão deve ser cumprida – e que é igualmente nobre e necessário. Mas centremo-nos no primeiro caso, na vertente de procura desinteressada de conhecimento para além da satisfação da curiosidade na sua essência, ainda que sempre inserida no contexto que lhe é contemporâneo, para assinalar o Dia Mundial da Liberdade de Pensamento, que se celebra hoje, 14 de Julho.

Ser cientista num centro de investigação ou numa universidade é sinónimo de liberdade de pensamento, é decidir usar a vida para estudar obedecendo à própria curiosidade.

Ser cientista é observar um assunto, colocar perguntas, testar hipóteses, obter respostas e chegar aos resultados.

Descobrir o como e o porquê. De quê? De tudo. Nem o céu é o limite. Simplesmente do que quisermos e nos propusermos a estudar. Sem limitações. Sem responder a metas económicas, a estratégias empresariais ou multinacionais.

É saber estar atento às surpresas, ao que é atípico. É ir para além do que se está à procura e deixar-se ser surpreendido pelo inesperado. É encontrar respostas que nem se estavam à procura ao tropeçar num resultado e deixar-nos levar por ele. É seguir-lhe o rasto e por vezes dar de caras com novas descobertas aquém da premissa inicial.

O caminho vai-se fazendo, a cada resultado, que direciona e indica o caminho para o passo seguinte, com a vontade genuína de se estudar o que se gosta e explorar essa paixão.

É estudar medusas porque sim e porque se quer. Ou borboletas. Ou o ADN. Ou tintas. Ou madeira. Ou números. Ou… Poderia até parecer egoísta se ignorássemos os tremendos avanços científicos e tecnológicos que daí advém para a humanidade.

Uma retrospetiva histórica ensina-nos rapidamente que muitos avanços na biomedicina têm na sua génese passos dados na investigação fundamental. Para os mais céticos, a desconfiança é combatida pelos indicadores objetivos que mostram os ganhos societais alavancados por descobertas da ciência básica.

Um exemplo clássico é o Prémio Nobel da Química atribuído em 2008 a Martin Chalfie, Osamu Shimomura e Roger Tsien pela sua descoberta da proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês) a partir do seu estudo em medusas. A GFP é uma proteína que existe naturalmente nas medusas e emite luz verde. Foi descoberta e isolada nos anos 60 e só mais tarde, nos anos 90, a aplicação desta descoberta foi aprimorada. Desde então esta proteína revolucionou a investigação biomédica, pois funciona como marcador de expressão genética e localização de proteínas dentro das células e em tecidos. Hoje em dia os cientistas podem marcar e seguir células tumorais, podem localizar proteínas dentro de uma célula para estudar a sua distribuição ou até descobrir por onde determinada proteína viaja num peixe-zebra, entre muitas mais possibilidades. Foi uma descoberta que revolucionou a investigação biomédica e que resultou da liberdade que investigadores tiveram em estudar medusas! Pode até ser excêntrico mas só veio provar que podemos conhecer o ponto de partida do nosso estudo mas que são inimagináveis os vários pontos de chegada.

A investigação científica é um processo contínuo e multidisciplinar. A montante temos a investigação fundamental que gera a matéria-prima para que a investigação aplicada, a jusante, possa melhorar a vida das pessoas, expandir empresas e impulsionar a economia.

Mas, como em tudo na vida, uma boa e agradável dose de liberdade traz acoplada uma dose igual de responsabilidade. E com a liberdade de pensamento que praticamos enquanto cientistas no dia-a-dia temos o direito e o dever de o fazer ao serviço de um bem maior e do bem comum. Há, por exemplo, inúmeros cientistas a dar aulas, e num efeito multiplicador, estimulam em cadeia a liberdade de pensamento nos seus alunos e esta é quase um prazer moral numa era em que aprendemos a ser cautelosos com as palavras e com tudo o que se expõe.

A liberdade de pensamento é tão intrínseca nos cientistas, quase visceral diria, que se torna o lado artístico da ciência ou quiçá uma ousadia.

A autora segue o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Ler 4 comentários