O partido que é o que sempre foi

Actualizar a agenda política e as causas que o PS deve defender à entrada da segunda década do século XXI não significa rejeitar a sua natureza nem o seu posicionamento ideológico de sempre ou querer ver cisões e desvios onde eles não existem.

A história contava-se pela Faculdade de Direito e parece que até é verdade. Como o jovem Durão Barroso, nos idos do período quente 1974-1975, tinha carregado os móveis do espaço da direcção da Faculdade para uma camioneta – seguramente com ajuda, olhando para o peso das mesas em causa... – e os levou em nome do proletariado para a sede do MRPP, onde acabou por ser devidamente censurado pelo furto por Arnaldo de Matos e teve de os devolver à sua proveniência académica. A partir daí seria o que se sabe, uma dedicação contínua ao ramo das mudanças. O percurso futuro de Durão Barroso funciona como uma quase caricatura do próprio percurso colectivo das nossas elites nas últimas quatro décadas: da militância maoísta à cadeira de primeiro-ministro de um governo PSD/CDS, da irreverência anti-sistema à presidência do banco que melhor encarna o capitalismo global pós-moderno e ao assento no grupo de Bilderberg.

Para que serve este intróito? Apenas para recordar que o PSD, entre nós, é o partido “mais português” naquilo que tantas vezes enunciamos como sendo um traço muito nosso, feito de pequenos e grandes oportunismos e de um pragmatismo acentuado, sem qualquer juízo moral aqui associado. Um PSD que já foi reduto de um centro-esquerda de inspiração católica e se converteu a dado momento numa luminária do liberalismo económico. Que foi liderado por Sousa Franco e por Passos Coelho. Que foi um feitor decisivo dos direitos sociais na Constituição de 1976 e que foi igualmente adepto do seu contrário, vendo-os como empecilhos civilizacionais. E sempre beneficiando de um apoio popular expressivo, note-se.

E será possível dizer o mesmo do PS? Não o creio. E creio até que não há nenhuma tensão entre esquerdismo e centro-direita dentro do PS, como nestes tempos de congresso recente se anunciava.

Por um lado, o PS enquanto estrutura militante, infelizmente, não comporta hoje a intensidade ideológica de que esse tipo de confronto precisa. É preciso também não confundir as opiniões pessoais de figuras numa dada circunstância concreta com um qualquer debate de ideias num partido.

Por outro lado, os militantes e simpatizantes do PS sabem bem onde estão. Num partido que preza a liberdade na sua ampla dimensão de liberdade política, escolha democrática e liberdade de iniciativa económica. Mas que sabe bem que sem um Estado regulador, mas também prestador, essa liberdade rejeitará sempre os mais fracos e isso não é politicamente aceitável nem compensável pela via da simples caridade particular.

Para além do PCP, provavelmente não há no espectro partidário português um outro partido que tenha sido sempre o que foi na sua origem. Guterres e Sócrates representaram o poder da direita do PS? Talvez haja quem goste de o dizer com acrimónia, mas se olharmos as medidas políticas estruturais desses períodos encontramos os traços de um posicionamento da esquerda socialista-trabalhista sem dúvidas nem desvios. Soares, Sampaio e agora Costa representam “a esquerda do PS”? É impossível dizer isso, porque “a esquerda do PS” sabe-se bem onde ela está e sempre esteve: na militância comunista muito expressiva em Portugal e na mais flutuante votação no Bloco de Esquerda, um produto político anti-sistema de Francisco Louçã e Miguel Portas com um timing genial, mas que é hoje mais um “saco de gatos” de egos excludentes do que uma qualquer proposta ideológica. PCP e Bloco que, aliás, são infelizmente as forças mais conservadoras do quadro político português e que representam, mesmo com acordos pontuais com o PS, um entrave a qualquer reformismo que transcenda aumentos salariais e recrutamentos para a função pública, independentemente da sua justiça e necessidade.

Actualizar a agenda política e as causas que o PS deve defender à entrada da segunda década do século XXI não significa rejeitar a sua natureza nem o seu posicionamento ideológico de sempre ou querer ver cisões e desvios onde eles não existem. A relação trabalho-vida familiar, o ambiente e a nova industrialização, a digitalização, a demografia e o envelhecimento, o acesso (e não já apenas a consagração) efectivo a serviços públicos e a direitos, a qualificação das pessoas, a qualidade da gestão e a produtividade, a regulação e responsabilização de uma economia cada vez mais rápida, dura e superficial – são temas demasiado sérios para quem se ocupe apenas de cismas ideológicos virtuais. Exigem uma nova geração de políticos que saiba onde está e esteja preparada para onde quer ir, vivendo um degrau acima do tacitismo partidário e dos arrufos transitórios de caserna.

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