O Folclore Impressionista dança-se com fantasmas de corpos presentes

Campos Espectrais, Vol.1 é um álbum que não é um álbum, criado por um conjunto de pessoas que não é uma banda. "Uma banda-sonora imaginária para a paisagem arrepiante do Vale do Côa", apresentam-se.

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Há momentos em que tudo é nebuloso como num filme de John Carpenter – e respectiva banda-sonora. Há momentos em que o sol irrompe e as sombras se desvanecem no horizonte para revelar uma escarpa graciosa e imponente, luz reluzindo a superfície do rio. Há momentos em que mergulhamos em nós mesmos, contemplando cenários imaginários, ouvindo a dolência de uma guitarra acústica dedilhada, um órgão com sopro de flauta e o chilrear de pássaros nas árvores. Não sabemos se estão lá. Nem os pássaros, nem aqueles rostos que nos invadem o pensamento, aqueles rostos de feições esbatidas, quais espectros de boina na cabeça, ou de xaile cobrindo o tronco. Ouvimos pássaros e insectos e ouvimos sinos na torre da Igreja. Ouvimos terra removida, passos dados sobre a terra enquanto um sintetizador toca notas esparsas.

Este é um álbum que não é exactamente um álbum, criado por um conjunto de pessoas que não é uma banda (mas tem núcleo duro, formado por João Paulo Daniel, Sérgio Silva, músicos com passado nos Hipnotica ou na primeira encarnação dos Beautify Junkyards, e o artista visual António Caramelo). Foi editado em cassete e alojado numa caixa de cartão. Gravado na caixa surge um nome: Folclore Impressionista. No interior da caixa, postais dos montes caindo sobre o rio. Uma ilustração reproduz o impacto sensorial do cenário natural, outra surge como mapa sem localização específica. Num pequeno encarte, estão as fotos gastas desfocadas, estão aqueles rostos e uma curta apresentação: “Uma banda-sonora imaginária para a paisagem arrepiante do Vale do Côa”. Foi dessa região fronteira entre a Beira e Trás-Os-Montes, entre Portugal e Espanha, entre o passado imemorial das gravuras rupestres, o passado próximo e o presente agora calcorreado que os Folclore Impressionista resgataram a sua primeira edição oficial, Campos Espectrais Vol. 1. Este sábado, será apresentada na ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios, no Barreiro. Ali acontecerá a Noite da Raposa, organizada pela associação cultural Out.Ra, e, além de Folclore Impressionista, actuarão, a partir das 22h, Raw Forest, Pedro Sousa, Kerox, Bleid e Contreira.

Who is this who is coming
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Estamos longe de Foz Côa, no final de tarde de uma esplanada lisboeta, mas é para lá que viajamos enquanto João Paulo Daniel nos fala de Stone Tape, filme que a BBC2 escolheu estrear no Natal de 1972. Nele, uma equipa desloca-se a uma casa assombrada para desvendar o mistério que a rodeia. Concluem “que as paredes preservam memórias de acontecimentos”, conta João Paulo. “E não sei se isso é totalmente descabido”, confessa. “Campos espectrais refere-se mesmo a campos que têm espectros. É qualquer coisa que anda por ali." Estamos de volta a Foz Côa: "É tão intenso, tão forte, pela História e pela configuração topográfica, que não sentes estar simplesmente num sítio com um rio.”

João Paulo Daniel cresceu em Foz Côa, antes de a vida o trazer para Lisboa, e conhece intimamente o local. Com ele na esplanada está António Caramelo, que só chegou a Foz Côa guiado por João Paulo. Em duas residências, fotografou, filmou em VHS, fez recolhas sonoras no campo e registos hidrofónicos, ou seja, dos sons dos cursos de água. “Fomos fotografar, ver e ouvir. Fazendo gravações de campo, temos uma percepção muito intensa e completamente diferente, porque estamos de auscultadores nos ouvidos, a ouvir com uma atenção que não teríamos de outro modo”.

Ouvimos esses sons integrados nas sequências criadas com sintetizadores cósmicos, órgãos estelares, caixas de ritmo reverberantes, pianos, guitarras acústicas. Ouvimos música que é um contínuo em lenta mutação, e que fruímos sugestionados pelas imagens incluídas na edição, responsabilidade da editora/promotora Nariz Entupido. “Uma ideia de atmosfera, é isso que criamos. Trabalhamos sobre atmosferas e não sobre detalhes”, explica João Paulo Daniel. “Saltamos entre o visível e o invisível”, acrescenta António Caramelo, responsável pelos vídeos projectados durante as apresentações. Os espectros, novamente. João Paulo Daniel foi à procura deles na sua Foz Côa por necessidade. “Precisava de o fazer ali, precisava de organizar a memória. Tenho uma memória terrível, não guardo detalhes, só sensações. Tinha essa necessidade de organização.”

Está tudo em Canado do Inferno, Subir ‘os trinta’, Vale dos moinhos ou Ancient ritual, alguns dos títulos das peças que ouvimos na cassete e que remetem para locais e memórias específicos. Está nos postais de António Caramelo ou nas ilustrações de Xavier Almeida, Pedro Petiz e João Fonte Santa que a acompanham. Uma viagem aberta à contemplação e ao mistério, fenda criada entre a paisagem visível e os fantasmas que a atravessam – a música e as imagens surgindo nessa intersecção. Folclore Impressionista é, define, João Paulo Daniel, “uma plataforma para trabalhar este tipo de temas": "Assenta em som e imagem, mas não lhe conhecemos bem as fronteiras, é algo mais gasoso, aberto à participação de quem entendermos.”

O projecto nasceu sob o signo do conceito de hauntology, cunhado pelo filósofo francês Jacques Derrida na sua obra de 1993, Os Espectros de Marx, e vertido para categorização musical já no nosso século. Encontramo-lo em editoras como a Ghost Box, onde editam agora os Beautify Junkyards, ou a Folklore Tapes – é música reflexiva, onírica, ambiental, verdadeiramente assombrada por fantasmas do passado, que surgem pelo recurso a library music, de emissões radiofónicas ou sons televisivos antigos recontextualizados, reconfigurados ou enxertados em matéria do presente.

João Paulo Daniel considera que, “vivendo num meio virtual em que o tempo parece já não fazer sentido, é completamente assíncrono”, é-lhe impossível “fugir” deste conceito de hauntology. Folclore Impressionista começou por explorá-lo no diálogo daquela música ambiental intensa com imagens de “actores e realizadores muito específicos que, de uma forma ou de outra, trabalham a questão da geografia, mas a geografia psicológica”, explica António Caramelo, citando os nomes de Andrey Tarkovsky ou Alejandro Jodorowsky – já trabalharam também sobre Art of Mirrors (1973), de Derek Jarman, e, mais recentemente, sobre A Journey to Avebury (1971), do mesmo realizador.

Neste Campos Espectrais Vol.1 – há outros a serem pensados para exploração futura -, entregaram-se à deambulação para definir “uma percepção de lugar, da energia do lugar”. Depois, enquanto a música e a imagem eram trabalhadas, tudo se expandiu. Foz Côa passou a ser apenas uma camada mais, um eco forte entre aquilo que é este disco que não é um disco, deste conjunto de músicos e artistas que não são uma banda.

Ouvimos a música, contemplamos a imagem. Viajamos. Os espectros revelam-se.

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