Há mil coisas para ver no universo invisível dos Beautify Junkyards

The Invisible World of Beautify Junkyards mostra- nos como o universo que a banda lisboeta criou a partir da folk psicadélica é hoje um lugar que não nos cansaremos de visitar. É feito para um tempo sem tempo e está pronto a habitar.

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Lois Gray

Falam-nos da história de três raparigas que sobem a montanha acima até encontrarem um gruta e desaparecem nela (“Viagem no tempo?  Fenómeno sobrenatural?”). Falam-nos do ser mítico escondido na floresta, mulher de uma beleza extraordinária que enfeitiça quem quer que se aproxime dela. Falam-nos do “cheiro da terra, planície e montanha, que me amarra tanto, com uma força estranha” – estão a citar a Banda do Casaco. Falam-nos do reino onde existe “a great  abundance  of  all  excelent  things” – estão a citar The  Celtic  Twilight, de William Butler Yeats. E havemos de falar dos Boards of Canada e da editora Factory, de Burial e da Ghost Box, a editora britânica que é agora a sua casa.

Estamos a falar dos Beautify Junkyards e do magnífico Invisible  World que criaram no seu terceiro álbum. Na capa, uma figura fantasmagórica irrompe de um cenário natural habitado por árvores, dois homens, uma mulher de rosto escondido, um cavalo. “É o espectro saindo do bosque”, diz ao Ípsilon o vocalista João Branco Kyron. “Sai das profundezas do bosque e gosto de pensar que algumas pessoas conseguirão chegar lá ouvindo a nossa música. É um sítio onde nos sentimos em segurança, mas, ao mesmo tempo, um sítio onde estamos rodeados de mistério”. A analogia adequa-se na perfeição ao efeito que produz a música dos Beautify Junkyards – este mundo invisível é realmente um jardim de delícias, mas não esconde as suas sombras e alicia-nos com os seus mistérios.

A banda apresentou-se mergulhando em memórias folk de outros tempos e de outras latitudes, entre Donovan, Heron, Vashti Bunyan e Mutantes, nessa estreia homónima editada em 2013). Lançou depois The  Beast  Shouted  Love (2015), onde se harmonizavam texturas electrónicas e demanda instrumental, onde o desejo de fuga se corporizava em música híbrida, digitália e folk tropicalista, que não era de ontem e não teria que ser necessariamente de hoje – era, antes, uma via aberta para um outro lugar, uma realidade sonhada, reinventada. The Invisible  World  of  Beautify  Junkyards, aprofunda essa sensação e torna mais real a matéria sonhada. Será apresentado este domingo, nas Damas, em Lisboa (19h, entrada livre).

O álbum é editado pela Ghost Box, editora britânica de culto que tem aplicado de forma profícua, a nível musical, a ideia de Hauntology, termo cunhado pelo filósofo francês Jacques Derrida em 1993 – a ideia de habitarmos um mundo assombrado pelo passado (Derrida referia-se ao espectro de Marx), ou melhor, por todos os passados, que se mesclam e se transmutam no presente como ecos aos quais não queremos escapar, como ecos que absorvemos como matéria do presente. “Uma coisa positiva neste conceito é a liberdade criativa quanto influências estéticas”, diz o vocalista João Branco Kyron. "Podem reunir-se ao mesmo tempo influências da electrónica inicial, bandas sonoras de filmes checos dos anos 1960, as raízes da folk, música criada para televisão ou ‘library music’ e canalizá-la com o potencial da tecnologia actual. Os fantasmas manifestam-se através de meios electrónicos".

A ligação com a Ghost Box surgiu depois do contacto de Jim Jupp e Julian House, os fundadores da editora, com o álbum The Beast Shouted Love. “Eles ficaram um pouco fascinados, não só pelo nosso interesse pela cultura daquele universo [da folk psicadélica britânica] e da Hauntology, mas também por o termos apropriado à nossa geografia, com as canções que cantamos em português, com a aproximação ao Brasil”. Depois de um single editado na série Other Voices, chegou o convite para o álbum gravado por João Branco Kyron, pela vocalista Rita Vian, pelo baixista Sergue Ra, o percussionista António Watts, o guitarrista João Moreira e Helena Espvall, a violoncelista e guitarrista que descobrimos nos americanos Espers, belíssimos pesquisadores folk em início deste milénio, que se mudou para Lisboa há seis anos e que é agora membro da banda.

João Branco Kyron e Helena Espvall contam que tudo começou no isolamente de uma casa no campo. “Passámos um fim-de-semana em jams, a entrar no nosso espaço. Tocámos e tocámos, gravámos tudo”, diz Helena. Essa foi a base sobre a qual se construiu este álbum de maravilhas multiformes, da Cabeça-flor cantada por Vian com Rita Lee nas redondezas, aos dedilhados folktronica de Shelter – com a viola do Nordeste brasileira a mostrar-se próxima da portuguesa campaniça -, à forma como texturas electrónicas, gravações caseiras, diálogos resgatados a origem incerta e composições em estúdio moderno se combinaram para erigir este mundo. Um mundo para lá. “O mundo que pode vir a ser”, afirma João Branco Kyron. “Sabemos onde estamos e em que ponto da história estamos. Vivemos tempos muito agressivos e o futuro será mais negro socialmente. Nós estamos a encontrar nos nossos caminhos.” Ouve-se a voz de Rita Vian em Cabeça-flor: “Estou com os pés na terra ,estou / Criar raízes agora, eu vou”

As três raparigas na ruralidade australiana são as de Picnic  at  Hanging Rock, filme de Peter Weir (1975). O ser mítico é o criado em 1882 pelo poeta sueco Viktor Rydberg. As primeiras foram vertidas em Sybill’s  dream, o segundo é apresentado em The masque of  the  hidden  garden, narrada em sueco por Helena Espvall. Isto, e as citações da Banda do Casaco e de Yeats, e a forma como a música dos Beautify Junkyards tanto toca o ambiente crepuscular da electrónica psicadélica dos Boards of Canada, como a luminosidade calmante dos Mutantes ou o voltejar misterioso, ora grave, ora celestial, da folk anglo-saxónica, são parte de um mesmo contínuo – aquele que os Beautify Junkyards inventaram para si e que agora nos oferecem.

Tudo começou com duas semanas isolados numa casa do campo. Depois, em grupos de dois ou três músicos, foram criando novas camadas. Helena Espvall diz que, na música, sempre se sentiu “uma espécie de espírito preguiçoso a flutuar por ali e a acrescentar pequenas coisas”. E conta: “Sempre que regressava [para ouvir novas gravações] surpreendia-me, via que tudo se estava a transformar num edifício muito bonito”. Sem paredes que o prendam, sem tempo que contenha, o edifício dos Beautify Junkyards apresenta-se completo. Chamaram-lhe mundo invisível, mas os nossos olhos não se cansarão de o olhar.

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