A ressurreição de Alejandro Jodorowsky

O cineasta chileno “inventou” o midnight movie com El Topo, em 1970, mas o seu cinema foi sempre mais falado do que visto. O MOTELx mostra este fim-de-semana o seu retorno à realização após 25 anos de ausência, La Danza de la Realidad.

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Alejandro Jodorowsky é um mestre da cinefilia mais underground
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La Danza de la Realidad
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Primeiro, foi a redescoberta da sua versão nunca concretizada de Dune. Depois a devoção de cineastas “do momento” como o iconoclasta dinamarquês Nicolas Winding Refn (Drive). Finalmente, o regresso à realização com La Danza de la Realidad, estreado na Quinzena dos Realizadores de Cannes 2013 e que o MOTELx vai exibir este fim-de-semana (domingo 14, 16h15, Cinema São Jorge).

Talvez por trás desta “ressurreição” do chileno Alejandro Jodorowsky, 85 anos, não esteja outra coisa que não a vontade de lançar luz sobre momentos esquecidos da 7ª Arte, ou a necessidade de celebrar a diferença e a marginalidade numa altura em que o cinema mainstream está cada vez mais formatado. Mas a verdade é que já não é de agora que o nome de Jodorowsky é sussurrado pelos adeptos da cinefilia mais underground como o de um mestre injustamente ignorado – muito embora nunca tenha realmente estado ausente do olhar público.

Os seus dois filmes míticos, El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973), continuavam a ter uma reputação intocável, e o colapso da produção de Dune levou-o a virar-se para a escrita, assinando a partir de finais da década de 1970 os guiões de inúmeras novelas gráficas, as mais conhecidas das quais (as sagas do Incal e dos Meta-Barões) desenhadas por Jean “Moebius” Giraud. Houve algumas incursões pontuais no cinema, das quais só uma, Santa Sangre (1989), não foi “deserdada” por Jodorowsky, que desdenha as ideias de cinema mainstream, ou, como ele lhe chama, “industrial”. E o seu trabalho como terapeuta espiritual, criador da doutrina da “psicomagia”, manteve-o activo.

Xamã
E, contudo, a dificuldade em aceder ao trabalho do cineasta e aos seus dois filmes-chave, bloqueados por questões de direitos durante décadas, apenas contribuiu para amplificar a aura de distanciamento e mistério que já vinha desses anos. Diletante polivalente que estudou mímica, filosofia e psicologia, poeta, dramaturgo e desenhador, integrante da troupe de Marcel Marceau e do movimento surrealista-absurdista Pánico com Roland Topor e Fernando Arrabal, estudante de meditação e budismo zen, Jodorowsky nem sequer era um rapaz novo quando El Topo o transformou em guru da contra-cultura. Estava a caminho dos 50 anos, e a sua idade ajudou muito à dimensão de sábio visionário cuja experiência de vida o sintonizava com a nova geração que buscava libertar-se das amarras de uma sociedade rígida e envelhecida, tornando-o numa espécie de “xamã” de um misticismo sensorial que acertava na mouche na busca de novos horizontes (pessoais, artísticos, sociais) da década de 1970.

A palavra “xamã” tem aqui significativa importância, porque o cinema de Jodorowsky sempre se alimentou das explorações surreais do interior da mente alimentadas a psicadélicos e abrindo novas “portas da percepção”. O conceito de redenção foi sempre central ao seu trabalho – tanto A Montanha Sagrada como El Topo eram buscas espirituais propulsionadas a ácidos e sangue, com a pureza do seu radicalismo a torná-los “acontecimentos”; a doutrina “psicomágica” que o cineasta desenvolveu ao longo dos anos tem como âncora a sublimação pela arte dos traumas pessoais e psicológicos (sendo inteiramente posta em prática em La Danza de la Realidad, que adapta a sua auto-biografia e no qual praticamente toda a sua família colabora, num filme que funciona, nas palavras do próprio realizador, como catarse das tragédias do “clã” Jodorowsky).

El Topo

, sobretudo, tornou-se – independentemente das suas reais qualidades – um evento

hippie

-chique, o

it movie

de 1971, que esteve seis meses nas sessões da meia-noite do lendário cinema Elgin em Nova Iorque e lançou a estética contra-cultural dos

midnight movies

transgressores. A crítica dividiu-se, as figuras públicas acorreram – John Lennon viu-o várias vezes e convenceu Allen Klein (que impusera como

manager

aos outros Beatles) a comprar os direitos de distribuição, Dennis Hopper gostou tanto que convidou Jodorowsky para montar

The Last Movie

. Mas o filme que fez o nome de Jodorowsky transformou-se numa espada de dois gumes: uma espécie de “porta aberta” pela qual o cineasta entraria para se tornar no tal diletante intocável, figura tutelar sempre presente que não hesitaria em aproveitar todas as oportunidades que se lhe apresentassem, independentemente da sua potencial viabilidade, mas que sofreria também com essa omnipresença constante.

O maior exemplo disso é o Dune que nunca viu a luz do dia. Jodorowsky tivera os direitos do influente romance de ficção-científica de Frank Herbert a partir de 1975, e esbanjou dois milhões e meio de dólares ao longo de dois anos num projecto nunca concretizado cujo guião era – nas palavras do próprio escritor – “do tamanho de uma lista telefónica”. Para o elenco falava-se de Orson Welles, Salvador Dalí, Gloria Swanson, Mick Jagger e Amanda Lear (e Brontis, o filho mais velho de Jodorowsky, no papel principal de Paul Atreides); os Pink Floyd escreveriam a música, e H. R. Giger e Moebius contribuiram conceitos visuais.

Foi também aqui que se criou a reputação do chileno como um cineasta em nada interessado no mundo prático à sua volta – Frank Herbert dizia que o guião de Dune resultaria num filme de 14 horas, e eventualmente o projecto caiu por terra sem nunca ser feito (Dino de Laurentiis resgataria os direitos em 1982 e entregou o projecto nas mãos de David Lynch). E o filme que nunca foi feito acabou por ser mais importante pelo que gerou inadvertidamente, com obras clássicas do cinema fantástico, do Alien de Ridley Scott ao Quinto Elemento de Luc Besson a alimentarem-se das ideias desenvolvidas durante a pré-produção de Dune. Jodorowsky chegou a processar Besson por ter “roubado” ideias suas para O Quinto Elemento, mas o processo morreria porque Moebius trabalhara como consultor em ambos os filmes (e algumas das ideias desenvolvidas para Dune surgiram nas BD em que trabalharam juntos).

Não foi o único “contratempo” da sua carreira: a relação com Allen Klein, que distribuiu El Topo e investiu em A Montanha Sagrada, desintegrar-se-ia acrimoniosamente, e só após a morte do produtor Jodorowsky chegaria a acordo com os herdeiros para redisponibilizar os filmes (relançados em DVD sumptuosamente restaurados pelo próprio realizador). O seu trabalho de montagem em The Last Movie seria sumariamente descartado por Dennis Hopper; e uma tentativa de fazer um blockbuster produzido por Alexander Superman Salkind com Peter O’Toole e Omar Sharif, The Rainbow Thief, ser-lhe-ia retirada das mãos e existe apenas numa versão desautorizada pelo realizador.

Mas como se costuma dizer, está tudo bem quando acaba bem. Michel Seydoux, produtor de Alain Resnais ou Nikita Mikhalkov, que investira muito do orçamento de Dune, fez as pazes com Jodorowsky e não só ajudou a financiar o documentário de Frank Pavich, Jodorowsky’s Dune, como lhe produziu La Danza de la Realidad. E, de um momento para o outro, o xamã místico regressou à primeira linha, apoiado por gente como Nicolas Winding Refn, que considera o realizador um amigo e lhe dedicou Só Deus Perdoa – e que faz tenção de filmar O Incal, depois de o chileno lhe ter dito para abandonar o seu projecto hollywoodiano (uma remake de Fuga no Século XXIII) e perseguir a sua própria musa. Como Alejandro Jodorowsky insiste em fazer ao longo de uma carreira que já ninguém podia acreditar que renascesse.

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