“Abram as portas das universidades.” O Maio de 68 pelos estudantes de hoje

No mês em que se assinaram cinquenta anos desde que as barricadas tomaram a Quartier Latin, dias depois dos estudantes franceses terem saído para a rua, o PÚBLICO questionou os universitários portugueses sobre o que os levaria a levantar a voz. O poder, a precariedade e o futuro voltam a estar, em moldes diferentes, em discussão.

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Carolina Alves Paulo Pimenta

Revisitando as frases-símbolo do Maio de 68, fomos ao início: à universidade. E questionamos os estudantes de hoje, cinquenta anos após a revolta que abanou a França e cujas repercussões passaram algumas fronteiras, sobre o que acham que deve ser questionado. Eles criaram novos slogans.

O ensino superior em Portugal não precisa de uma revolta avultada, mas de medidas revolucionárias. Dizem-no os jovens ouvidos pelo PÚBLICO, quase duas dezenas, que quase transversalmente traçam um diagnóstico: o acesso, o papel da universidade na sociedade e o dos estudantes na universidade tem que ser questionado. Há instituições novas – que trouxeram ar fresco para o ensino –, mas resistem instituições “amórficas”, com professores que “vivem no passado” ou substituídos por investigadores não talhados para a docência. Aí os alunos estão longe do centro de decisão. E a maioria dos professores longe da pedagogia.

Há uma autocrítica latente: os estudantes estão adormecidos. Acordá-los pode passar por reforçar a sua representação no topo das instituições. Já o pagamento do ensino é uma incómoda pedra no sapato e coloca os estudantes dos dois lados das barricadas: os que seguem a linha de pensamento de que quem usufrui tem que ajudar a custear e os que querem fazer renascer o debate sobre o ensino gratuito. É, pelo contrário, transversal o apoio ao aumento das bolsas. Para que quem queira continuar o ensino, não seja privado disso.

Carolina Alves. Quanto custou a voz dos alunos?

A pacatez das coisas incomoda-a. Mas pior, na opinião da estudante de Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, é o conformismo dos estudantes face a mudanças que os prejudicam. "O ensino como está agora está assim há tanto tempo. Os estudantes estão tão habituados que nem param para pensar se estão a ter um ensino construtivo e aberto, que os estimule a aprender, a pensar e a desenvolverem-se enquanto indivíduos. Para haver algum movimento que faça com que as coisas mudem era preciso que os alunos efectivamente se apercebam do estado das coisas."

E as coisas estão em que estado? Carolina Alves, 20 anos, natural de Bragança, vê uma “enorme distância” entre alunos e professores. “Somos colocados numa sala, fechados, com o professor a falar e onde o nosso papel é ouvir. Não se cria um espaço de discussão. Não há um espaço para haver uma aproximação suficiente para que haja uma relação que seja construtiva para os dois lados", sublinha.

O envolvimento das empresas – e que Carolina descobriu ao interrogar-se sobre a presença de instituições bancárias, por exemplo, no interior das faculdades – causa-lhe confusão. E acredita que foi a favor dos interesses privados que os alunos “perderam poder e voz” com o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, aprovado em 2008. "Com o passar dos anos e com o aumento de poder das empresas que actuam à volta das universidades – e agora mesmo lá dentro –, os interesses económicos e financeiros deram espaço a que estes regimes jurídicos fossem postos em prática”, sublinha. Este regime, que várias organizações de estudantes querem ver revisto, fez com que na Universidade do Porto, por exemplo, existissem mais “representantes dos privados do que dos alunos” no Conselho Geral.

Mas Carolina tem a percepção de que a maioria dos estudantes não está ciente destas questões. E isso importa, porque “se os próprios [alunos] não tiverem iniciativa de questionar e reivindicar, a universidade não vai sentir necessidade de mudar”, acredita.

Matilde Albuquerque. Aprender não deve ser um acto burguês

Aos 21 anos, no terceiro da licenciatura em Design de Comunicação, Matilde Albuquerque é categórica: “Quem quisesse aprender devia ter sempre acesso ao ensino superior." E para tal haveria que mudar o ingresso, permitindo que todos os estudantes que terminassem o ensino secundário pudessem continuar, como o fazem de forma quase automática noutros ciclos de estudos. Na opinião desta aluna da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, “negar a educação é uma forma de opressão”, que arrisca a que, em momentos de crise, as universidades “sirvam apenas uma elite”.

Pede a abertura das escolas, através de uma maior acessibilidade a bolsas, e o foco do ensino nos estudantes. Uma mudança que, acredita, teria inevitavelmente impacto no evoluir para uma sociedade mais justa. “Nós temos cinco hipóteses para escolher na entrada para a faculdade e há países, como a França, onde há 30. A barreira que temos está acabada. A cultura geral e o acesso a ela por parte das pessoas evoluiu, mas nada mudou no acesso à universidade."

O preço da habitação e dos transportes é outra questão que levanta para caracterizar um acesso que vê “muito pouco democrático”. Pede que se “abram as portas das universidades”.

Ana Roque. Esta precariedade é uma inércia

Há muito no ensino que Ana Roque, de 23 anos, conhece que a leva a notar a persistência de “professores caducos, de uma universidade caduca”. Não sendo todos assim, persiste nesta estudante de mestrado em Direito a ideia de que “a academia tem melhores investigadores do que professores”, sendo certo que “nem toda a gente nasceu com espírito pedagógico”, mas por obrigação ou necessidade acumula os dois cargos. E é isso que subverte o objectivo da faculdade, acredita. “O que interessa no fundo a determinadas franjas é ter boas notas, ter uma boa dissertação de mestrado e posteriormente uma boa dissertação de doutoramento para assegurar um lugar.” A universidade não deve ser um degrau, sublinha.

Natural de Pombal, Ana acha que há “problemas que deixaram de existir quando comparamos esta universidade à de 68”, mas outros que ainda se impõem. “Supostamente há um acesso mais livre, mas que tem sido assombrado com taxas e taxinhas que continuam a ser cobradas muitas vezes indevidamente e injustamente.” O seu caso serve de exemplo. Mesmo sendo beneficiária da acção social escolar teve que pagar cerca de 150 euros para se candidatar à segunda fase de acesso ao mestrado na Universidade de Coimbra, "sem saber se iria entrar".

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André Garcia. O ensino tornou-se numa fábrica

“Os exames nacionais dizem-te qual o valor nesse processo. E mediante esse valor, fazes a compra de um curso. Depois memorizas coisas e falas sobre elas. É um processo quase mecânico. O ensino é uma espécie de fábrica.” André Garcia, de 21 anos, estudante na Universidade do Porto, não acha que o estado das coisas vá ficar como o descreve durante muito mais tempo. “Tal como a nossa economia já não é um capitalismo freudiano, o ensino vai tornar-se cada vez mais individualizado”, acredita.

Mas, até lá, o estudante de Ciências da Comunicação vê a universidade transformada numa empresa feita para entregar pessoas para o mercado de trabalho. “Mas não devia ser só isso: devia formar pensadores”, pois só esses “têm a capacidade para mudar o mundo e a mentalidade das pessoas”.

Ele próprio mudou a sua. “Achava que ser estudante universitário era outra coisa”, que "teria espaço para descobrir por" si mesmo, investigar, estudar além dos conteúdos programados pelos professores.

No terceiro e último ano, André Garcia deixará o curso com a sensação de que o “ensino está à espera de pessoas diferentes”, porque as instituições não sabem “o que é que as pessoas que saem do secundário sabem, o que é que estão preparadas para fazer, o que é que elas precisam que lhe digam”. E como é possível um ensino mais individualizado? “Basta pôr os estudantes nos centros das instituições”, afirma.

André Ferrão. Ninguém me impede de dizer o que acho, mas ninguém me ouve

“Os estudantes universitários acham todos que devem ser precários. Há uma ideia de que o mercado está mau, então nós temos que sofrer e aceitar o que nos dizem, porque é assim que se aprende. É? Eu não acho.” André Ferrão, de 23 anos, sente que o ensino deixou de se compadecer com o que os alunos querem – e mesmo que tenha liberdade para falar, não se sente ouvido. “Actualmente o ensino superior é visto como um negócio. Só faria sentido que os alunos tivessem um papel preponderante naquilo que as universidades fazem, que não têm. O que importa é que eu pague as propinas.” Vê “obsoletos” os órgãos a que se dirige para falar.

“A universidade infantiliza os alunos. Vejo os meus amigos de engenharias, medicina – os ditos cursos grandes – que no fim sabem estudar, não sabem o que fazer além disso.” É a descrição deste futuro jornalista, finalista na Universidade do Porto, daquilo que caracteriza como uma “linha de montagem”, em que os alunos “entram e saem, mas poucas competências desenvolvem”.

Mas os jovens, diz, têm medo de tornar públicos estes pensamentos. “Ou porque acham que terão consequências negativas se se insurgirem ou que vão ficar sozinhos. Com uma mobilização, acredito que as coisas mudassem, mas era preciso todos lutarmos pelo mesmo."

Lúcia Ribeiro. Temos canudos de latão

Há duas coisas que Lúcia Ribeiro, aos 23 anos, está a aprender a gerir: o excesso de expectativas e a falta de garantias. A finalista de Medicina no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar acha que há uma questão estrutural no ensino que devia levar os estudantes à rua: a não limitação de vagas. "Se tu pagas, tu entras. Mas depois não te dão perspectivas nenhumas, porque as vagas não correspondem à necessidade de trabalho. Estás a tirar um curso, a gastar dinheiro, para entrares num mercado que pode estar saturado, quando podias estar a fazer outra coisa muito mais proveitosa para ti." Lúcia reivindica uma mudança de mentalidade para que os jovens possam optar pela via profissionalizante “sem culpa e sem preconceitos”.

A isto se juntam as expectativas socialmente construídas à volta do ensino superior. “A sociedade está naquele ponto em que acha que por teres um curso tens que saber exercer a profissão correspondente de imediato, mesmo que um curso não te prepare para isso. Mas também não te aceitam em trabalhos com menos exigência, porque tens um canudo na mão. À partida investiste mais de ti e terás ainda mais dificuldade em encontrar alguma coisa se não te adaptas a este mercado formatado”. Lúcia sente que se a falta de perspectiva se mantiver quando tiver o canudo na mão, este pode "servir apenas de passe para sair do país".

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