Jorge Silva Melo retoma a conversa inacabada com Álvaro Lapa

Encenador estreia este domingo no Museu de Serralves O Rapaz de Uccello ou aquilo que nunca perguntei ao Álvaro Lapa. Nova oportunidade para inquirir o pintor sobre temas como a literatura, a juventude, a viagem.

Fotogaleria
João Pedro Mamede em O Rapaz de Uccello... Artistas Unidos
Fotogaleria
Jorge Silva Melo, encenador Nelson Garrido
Fotogaleria
Álvaro Lapa Alexandre Carvalho
Fotogaleria
Exposição no Museu de Serralves Paulo Pimenta

Jorge Silva Melo tem em sua casa uma pintura de Álvaro Lapa (1939-2006) para a qual olha todos os dias. É um dos múltiplos trabalhos em que o artista desaparecido há já mais de uma década representou “o rapaz de Uccello”, a figura de adolescente que entreviu no pintor florentino Paolo Uccello (1397-1475), e que um dia admitiu ser “a única referência clássica” na sua obra.

Foi a olhar, pela enésima vez, para esse retrato – “Não sei bem se é um retrato, um espelho ou uma sombra”, confessa ao PÚBLICO – que o encenador pensou o texto de O Rapaz de Uccello ou aquilo que nunca perguntei ao Álvaro Lapa, que este domingo, às 18h, tem estreia nacional no Museu de Serralves, em mais uma iniciativa do ciclo paralelo à exposição Álvaro Lapa: No Tempo Todo, patente até 20 de Maio.

No texto de apresentação deste novo encontro com a obra de um dos mais relevantes artistas portugueses da segunda metade do século XX – depois do documentário Álvaro Lapa: a Literatura (2008), que precisamente abriu este ciclo de actividades no museu portuense –, Jorge Silva Melo escreve: “Álvaro Lapa não era evasivo. Era penetrante. Respondia, hesitava pouco, falava baixinho, mantinha um silêncio que ninguém conseguiria interromper. Silêncios por vezes dolorosos. Eu nem sempre entendia o que ele dizia de forma peremptória, eram ‘provérbios’, dizia”.

Ao PÚBLICO, o encenador-realizador especifica que nas longas tardes em que esteve a filmar e a entrevistar o pintor na sua casa de Leça, no ano anterior à sua morte, como, cinco anos antes, noutra ocasião, teve “todo o tempo do mundo” para o questionar sobre a sua obra, sobre si, sobre o mundo – e sobre a literatura. “Por que é que eu não lhe fiz mais perguntas? Talvez porque quis fingir que estava a perceber o que ele me estava a dizer”, admite agora.

O Rapaz de Uccello ou aquilo que nunca perguntei ao Álvaro Lapa é, de algum modo, uma tentativa de reparação dessa lacuna. E se o pretexto é a exposição que Miguel von Hafe Pérez comissariou para o Museu de Serralves, a verdade é que Jorge Silva Melo tinha este texto “semi-pensado” antes dela. “Mas não estava organizado”, reconhece, e foi o contacto com a obra “afirmativa, substantiva”, de um Álvaro Lapa que “está agora em Serralves íntegro como as pedras da praia de Labruge, que ele frequentava em Vila do Conde”, que lhe permitiu retomar esse diálogo inacabado com o pintor.

A juventude e a viagem

“Esta fantástica exposição abriu-me portas, e criou-me também a disponibilidade para esta viagem – que é outro dos temas da obra de Lapa”, diz Silva Melo, que regressa à figura (à sombra?) do “rapaz de Uccello” para evocar, citando-a do seu documentário, outra afirmação do artista: “Disponível, disponível é a juventude. Mesmo que seja incapaz, incompetente, estouvada, destrutiva. Mas é disponível.”

Isto explica que Jorge Silva Melo tenha escolhido para esta sua criação o actor mais jovem com quem vem trabalhando, nos anos mais recentes, nos Artistas Unidos: João Pedro Mamede, que com ele contracena em O Rapaz de Uccello ou aquilo que nunca perguntei ao Álvaro Lapa. “Tinha de ser ele a representar a juventude de que fala o Lapa, não apenas pela sua idade, mas porque é um actor que admiro”, justifica.

Com 26 anos, e a trabalhar com os Artistas Unidos desde 2012, João Pedro Mamede integrou o elenco de criações como A Morte de Danton (Georg Büchner), O Regresso a Casa (Harold Pinter), Jardim Zoológico de Vidro (Tennessee Williams), além de ter ele próprio encenado, no ano passado, A Estupidez, de Rafael Spregelburd.

E há ainda a viagem – o outro tema da obra de Lapa. “Ele, que nunca viajou, além de uma vez ter ido da sua Évora natal a Setúbal, e de ter depois vivido em Lagos e no Porto, tinha uma predilecção pelas histórias de viagens, do Moby Dick ao Malcolm Lowry – e até pintou quadros sobre o Pêro Vaz de Caminha”, diz Jorge Silva Melo. “O mundo está a rodar, e ele está imóvel”, nota o encenador.

Um chá energético

O Rapaz de Uccello ou aquilo que nunca perguntei ao Álvaro Lapa cumpre a segunda das três estreias que o Museu de Serralves programou em torno da exposição de Álvaro Lapa. A primeira ocorreu já no domingo passado, 28 de Abril, com a performance dos Von Calhau!, O Praner de Urizar, no fosso do palco do Auditório de Serralves.

A concluir o programa, a 13 de Maio, Isabel Carvalho estreia O-chá-mú, com “a leitura de uma sequência de pequenas narrativas” decorrente da sua experiência de aluna de psicologia do próprio Álvaro Lapa, em 1995, quando o professor aconselhou a sua turma a tomar chá mú. “É um chá composto de várias ervas e raízes reconhecido por fortalecer os órgãos reprodutores femininos e pela moderação com que deve ser bebido por possuir uma energia considerável de yang”, explica Isabel Carvalho, acrescentando que, “como metáfora da memória, a escolha do título reflecte a actualização das impressões antigas da experiência escolar, recuperadas e recombinadas com o percurso pós-escolar e o contacto retomado com a obra de Álvaro Lapa”.

Sugerir correcção
Comentar