Jorge Silva Melo filma Álvaro Lapa

As relações do artista com a literatura constituem o fio condutor do documentário

Quem passasse nas imediações da Galeria Fernando Santos, no Porto, na sexta-feira, dar-se-ia certamente conta de algumas movimentações pouco usuais: uma equipa de filmagem captava alguns dos instantes da montagem da exposição Reunião, de Álvaro Lapa. Era o arranque do documentário Álvaro Lapa: A Literatura, de Jorge Silva Melo, o último de uma trilogia do realizador dedicada a um grupo de artistas eborenses iniciada, em 1995, com Palolo, Ver o Pensamento a Correr, e prosseguida, em 1999, com Joaquim Bravo, Évora, 1935, Etc Etc Felicidades.O primeiro dia de trabalho foi dedicado a filmar a instalação das pinturas na galeria, local por onde se espalhavam os equipamentos habituais: câmaras, cabos, fios, luzes, um monitor, etc. Neste novo projecto, Silva Melo conta com a colaboração de Rui Poças (director de fotografia) e Emídio Buchinho (som), tendo obtido para já os apoios da Fernando Santos e do Museu de Serralves, neste caso a nível logístico.
A ideia do documentário nasceu há seis anos, aquando do trabalho em torno de Joaquim Bravo e para o qual Álvaro Lapa (Évora, 1939) deu uma entrevista, uma conversa "irresistível", na qual sobressaíram os "silêncios, as pausas, a suspensão", recorda Silva Melo. Agora, o céu estrelado do Caderno de Mallarmé, uma das novas pinturas do artista actualmente expostas no Porto, serve de fundo aos diálogos com Lapa agendados para o fim-de-semana - o de sábado, segundo o realizador, durou duas horas e correu muito bem.
A primeira indicação dada por Silva Melo a Rui Poças era a de que as filmagens deveriam decorrer ao ritmo da abertura da ópera As Bodas de Fígaro, de Mozart: "Aleggro, Vivace, depressa, depressa". É assim que Reunião - exposição na qual o artista faz uma série de reenvios para trabalhos e séries anteriores, uma prática sobretudo visível a partir da exposição Plurador (galeria Neupergama, Torres Novas, 2003) - constitui um momento indicado para se falar sobre os temas e variações de um dos nomes mais singulares e intensos da arte actual - uma constatação com validade a partir das primeiras obras de Lapa, criadas no início da década de sessenta. É nesses anos que Silva Melo visita as suas primeiras exposições em livrarias de Lisboa - 111, Divulgação e Buchholz: "Tinha 16, 17 anos quando aqueles trabalhos significaram para mim o libertar-me dos castanhos, dos sombrios do Júlio Resende, daquele peso e gravidade; afinal, era possível um mundo diferente", recorda. E acrescenta que, apesar de nunca ter privado com o pintor, ele passou a ser um tema recorrente das discussões de um grupo do qual faziam parte Luís Miguel Cintra, Eduarda Dionísio, Joaquim Manuel Magalhães e Manuel Gusmão.
No documentário, o cineasta irá procurar fixar aquilo que, na sua opinião, caracteriza o pintor. "Ele parece uma oliveira; há um lado árvore em Álvaro Lapa, ficamos suspensos a ouvi-lo". E irá, sobretudo, abordar as relações do artista com a literatura: das aulas, em Évora, com Vergílio Ferreira, às suas séries de desenhos, objectos e pinturas dedicados a Joyce, Pessoa, Burroughs, Marquês de Sade, Kafka -, passando pelos seus livros, dos quais Silva Melo destaca quer Barulheira (& Etc., 1982), "um texto absolutamente extraordinário", quer Porque Morreu Eanes (Estampa, 1978), que ganha uma inesperada actualidade dada a proximidade de umas eleições presidenciais em que participam "figuras do passado".
Em Álvaro Lapa: A Literatura, Silva Melo irá tentar colocar algumas perguntas que esclarecem este "enigma literário", que José Gil identifica como um ideolecto. Revelar a biblioteca deste autor, com o qual o realizador partilha o gosto por Gombrowicz, Lowry, Céline e Melville: "Devemos tê-los descoberto ao mesmo tempo, com idades diferentes", termina.

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