Reflexões teatrais

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Ricardo Aibéo tem talvez a sua máxima interpretação como Gens LUÍS SANTOS

A história do teatro em Portugal nas últimas décadas convocada por um imenso espectáculo da Cornucópia e outro mais problemático dos Artistas Unidos

Dois espectáculos em cena em Lisboa - A Morte de Danton de Büchner pelos Artistas Unidos, encenação de Jorge Silva Melo, no D. Maria II, e Fingido e Verdadeiro, a partir de Lope de Vega pela Cornucópia, encenação de Luís Miguel Cintra - não só suscitam reflexões teatrais e também políticas, como convocam fundas memórias da história do teatro em Portugal nas últimas décadas.

Na perspectiva de quem era então um muito jovem espectador movido de curiosidade, essas memórias remontam a 1969, era ainda a "primavera marcelista". Foi o ano em que o Grupo de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa apresentou Anfitrião de António José da Silva, "O Judeu", protagonizado e encenado por Cintra, e o Cénico de Direito estreou Volpone de Ben Johnson, dirigido pelo argentino Adolfo Gutkin.

A "primavera" cedo se dissipou, mas apesar do isolamento e da repressão impostos pela ditadura começaram a chegar ecos de novas práticas teatrais, de Peter Brook e Jerzy Grotowski, se não mesmo, mais longinquamente, do Living Theatre - que ainda haveria de cá vir quando, em 1977, Ernesto de Sousa organizou a grande exposição Alternativa Zero.

Para o jovem espectador (mas não só), sucederam-se "choques" como Breve Sumário da História de Deus, de Gil Vicente, e Ivone, Princesa de Borgonha, de Gombrowicz, encenados por Carlos Avilez no Teatro Experimental de Cascais, e sobretudo, também em Cascais, mas por iniciativa de Glicínia Quartin, As Criadas de Genet, com Eunice, Glicínia e Lurdes Norberto, dirigidas pelo também argentino Victor Garcia.

Estimulado por Gutkin, um conjunto de actores formava em 1971 Os Bonecreiros, primeiro dos "grupos de teatro independentes" cuja explosão iria marcar indelevelmente o panorama. Alguns saíram e nomeadamente João Mota, Manuela de Freitas e Carlos Paulo, fundaram A Comuna, que se estreava a 22 de Outubro de 1972 com Para Onde Is?, sobre textos de Gil Vicente, espectáculo apresentado como "criação colectiva" - o que tanto se praticaria -, embora a história subsequente tenha dissipado dúvidas sobre a direcção de facto de João Mota. Surgia também, reunindo-se para espectáculos concretos, o Grupo 4, com João Lourenço, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro, apresentando Tango, de Slawomir Mrozek, e a epítome de "teatro de vanguarda", Insulto ao Público, de Peter Handke.

Em 1973, Cintra e Jorge Silva Melo fundavam o Teatro da Cornucópia que, em tal contexto, parecia vir de alguma maneira a contracorrente: peças clássicas, teatro "de texto" (quando havia uma forte tónica na dita "expressão corporal"), de actores e de encenador - a sombra de Strehler pairava no primeiro espectáculo, O Misantropo de Molière, encenado e protagonizado por Cintra. Mas veio a Revolução, e também vieram novos ventos, sob a influência do trabalho de Jean Jourdheil e Jean-Pierre Vincent em França, por sua vez marcado pela Schaubühne de Peter Stein e Klaus Michael Grüber em Berlim.

Em 1976 começava de facto a grande aventura da Cornucópia, com Ah Q de Jourdheil e Bernard Chartreux: encenação de Cintra, uma inolvidável interpretação de Silva Melo e sobretudo a entrada em cena de Cristina Reis, com uma concepção radicalmente nova do espaço que profundamente mudaria a nossa percepção. Espectáculos como Casimiro e Carolina de Horváth e Woyzeck de Büchner seriam mesmo, "encenação, dramaturgia e cenografia", co-assinados pelos três, Cintra, Melo e Reis. Mas a Cornucópia era também um espaço de reflexão política, embora não no sentido mais imediatista então muito em voga. Atendendo ao que fora o processo revolucionário em Portugal em 74/75, e depois de Woyzeck, uma questão começou a pairar: e então A Morte de Danton?

A resposta de Cintra viria de algum modo com outro texto, A Missão, de Heiner Müller, em 84 - ou de como da esperança revolucionária surgem novas tiranias. Quanto a Silva Melo, deixou a companhia e em 1980 terminou o seu primeiro filme, Passagem ou A Meio Caminho, inspirado justamente em Büchner. Ficámos redobradamente na expectativa do Danton, afinal só concretizada mais de 30 anos volvidos - nunca aguardámos tanto por um espectáculo!

É possível que essas expectativas influam na recepção, mas o espectáculo não está à altura delas. Para quem foi seguindo o percurso de Silva Melo ao longo de décadas, e sobretudo para quem tem ainda vivas as memórias do processo revolucionário em 1974/75, é muito interessante politicamente que o ponto de vista do encenador se tenha deslocado de Robespierre, o homem da "virtude" e do Terror, para o de Danton, esse que diz que "A Revolução é como Saturno, devora os seus próprios filhos" ou "Vejo abater-se sobre a França uma grande desgraça. É a ditadura". Mas o encenador não conseguiu passar os seus propósitos aos actores, escapando a compreensão das ressonâncias históricas e políticas do texto, só patente em Pedro Gil/Robespierre e Rúben Gomes/Tom Payne. Mesmo Miguel Borges/Danton apenas revela a sua enorme energia na cena do julgamento.

Programada ainda por Diogo Infante, A Morte de Danton ocorre no Nacional D. Maria II quando o director é já João Mota, fundador primeiro de Os Bonecreiros e, há 40 anos, da Comuna. Eis o mais lapidar exemplo de como os "grupos de teatro independentes" criados nos anos 70 se institucionalizaram.

Companhia "institucional" tem sido certamente a Cornucópia, que durante décadas, para com o reportório clássico, foi de algum modo o "teatro nacional" que não havia. Mas mesmo para uma companhia assim, como enfrentar a crise, com quase 40 por cento de redução do apoio estatal, ou seja, com orçamento apenas para os custos fixos e não para programação, numa situação em que, ao contrário de anteriores temporadas, não tem co-produções com o D. Maria, o São João ou o São Luiz?

De há muito me parecia incompreensível que os grupos de teatro não originassem as suas associações de amigos. A resposta veio há meses da Casa Conveniente com a sua angariação de "pequenos mecenas" face à míngua de apoios, e depois da Cornucópia - e, atenção que é um gesto da maior importância, as adesões fazem-se para espectáculos@casaconveniente.pt e info@teatro-cornucópia.pt.

Mas mesmo tais apoios estão muito longe de bastarem para uma companhia com vocação para "grandes espectáculos" como a Cornucópia. Fingido e Verdadeiro, ou o martírio de S. Gens, actor é um espectáculo barroco e ao mesmo tempo uma pertinente resposta política e teatral à crise.

A fonte é El fingido Verdadero (note-se a introdução no título do espectáculo de um "e"), espantoso e muito pouco representado texto de Lope de Vega, mais citações de Santo Agostinho, Tertuliano (esse apologético cristão que bramava contra Os Espectáculos e "o Teatro... santuário de Vénus"), Jouvet e Genet. Como O Grande Teatro do Mundo de Calderón de la Barca ou A Ilusão Cómica de Corneille, o texto de Lope de Vega explicita a mundovivência barroca do mundo como representação. E como se vem notando recentemente em Cintra, há ainda a redescoberta da fé, da crença.

Mas crença também no poder teatral. Os colaboradores da companhia apresentam-se em cena perante nós tais quais são, incluindo mesmo o luminotécnico: tratando-se pelos nomes próprios, com Cintra como encenador, dando indicações e comentando o texto, por vezes cotejando-o com as suas fontes históricas; com o regresso de alguns actores regulares da companhia como Dinis Gomes, Duarte Guimarães e sobretudo Ricardo Aibéo, que como Gens tem porventura a sua máxima interpretação; e com cenários e guarda-roupa provenientes do património de outros espectáculos (há por exemplo dois fatos do Don Carlos de Schiller), convocando-nos para a memória de espectadores da Cornucópia ao longo dos anos - e isto é também uma reflexão política sobre a crise.

Fingido e Verdadeiro, um imenso espectáculo, e mesmo o mais problemático A Morte de Danton, são dois importantes tópicos de reflexão e memória histórica e teatral remetendo para o presente.

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