“Ganhámos o direito a ser protagonistas na reforma da união monetária”

Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, afirma que “não há nenhuma obsessão pelo défice” no executivo e que Mário Centeno não está isolado: “É uma posição de todo o Governo e do PS.”

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"Tencionamos fazer em Junho uma grande ofensiva portuguesa nos EUA ","Tencionamos fazer em Junho uma grande ofensiva portuguesa nos EUA " Sebastião Almeida,Sebastião Almeida
Augusto Santos Silva lança novo livro na próxima semana
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Augusto Santos Silva lança novo livro na próxima semana Miguel Manso

A presidência do Eurogrupo é uma oportunidade para mudar as regras da zona euro e completar a união monetária tendo como referência as políticas não austeritárias seguidas em Portugal. Palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros e número dois do Governo, Augusto Santos Silva, a propósito do lançamento do seu livro Argumentos Necessários. Contributos para a Política Europeia e Externa de Portugal (Tinta da China, Abril de 2018).

Defende a importância da revisão das regras orçamentais para permitir uma melhor articulação entre consolidação orçamental e financeira e as políticas económicas orientadas para o crescimento e o emprego…
E nós ganhámos esse direito. Nós ganhámos o direito de dizer que é preciso mudar as regras da zona euro, é preciso completar a união monetária corrigindo alguns dos seus elementos. E ganhámos esse direito porque mostrámos que não hesitávamos nem por um momento no cumprimento das nossas responsabilidades e que era perfeitamente possível cumprir as mesmas regras e chegar aos mesmos objectivos com políticas não austeritárias. A eleição de Mário Centeno é a expressão maior desse reconhecimento.

A eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo facilita ou dificulta essa tarefa?
Facilita, claro! Antes de mais, a eleição de Mário Centeno é vantajosa para o próprio Eurogrupo e portanto, para o Ecofin e para a União Europeia. E é também o reconhecimento de que nós tínhamos razão quando dizíamos que entendíamos que não era possível fazer consolidação orçamental com recessão económica e, portanto, que o cumprimento das metas orçamentais exigia políticas económicas e orçamentais que fossem no sentido do crescimento do produto, do emprego e do crescimento das famílias. Nós mostramos isso no discurso e na prática e ganhámos o direito a ser protagonistas na reforma e completamento da união monetária.

Esse programa será completo até ao fim deste mandato?
Não lhe posso garantir um resultado que não depende de Portugal, somos um em 19 da zona euro. Mas estamos empenhados nesse debate, fazendo propostas que são reconhecidamente sensatas, estimulantes e exequíveis. Basta ver a forma como foram recebidas em Bruges, em Bruxelas ou Estrasburgo as intervenções do nosso primeiro-ministro sobre as nossas ideias para a zona euro.

Até lá, tem de se cumprir tudo à risca, como quer o ministro das Finanças, com redução do défice abaixo do que está previsto no Orçamento do Estado (OE)?
Era esse o ponto onde queria chegar? Mas não é o ministro das Finanças, é todo o Governo e é o PS. Nós definimos uma trajectória orçamental, que apresentámos publicamente antes da campanha eleitoral [de 2015]. Julgo que perdemos votos por isso, mas ganhámos credibilidade. É uma trajectória gradual de eliminação dos cortes e dissemos que esse gradualismo era necessário para que a nova política não pusesse em perigo a consolidação das finanças públicas necessária para alinharmos com as regras europeias. É isso que temos feito. Seria absurdo e contraproducente interromper essa trajectória ou impor-lhe a meio do caminho uma guinada que a tornasse incoerente.

Mas a viragem é desde a aprovação do OE até agora…
Não. Quando vir os números do Programa de Estabilidade [a entrevista foi feita antes de ser conhecido o documento] projectado até 2022 vai verificar que nós mantemos a trajectória e que o que crescemos a mais no ano passado, porque a economia cresceu mais do que o previsto, não é agora desperdiçado. Mantendo a dinâmica, permite-nos chegar mais cedo às nossas metas. Disso depende o valor dos juros que pagamos, o valor da dívida pública e das condições de financiamento das nossas empresas, em suma, a sustentabilidade do crescimento da nossa economia e do nosso emprego. É tão simples como isso. Ninguém tem a obsessão do défice nem é uma obsessão do ministro das Finanças. É uma linha política do Governo que foi apresentada com clareza quer aos portugueses, quer aos nossos parceiros. No ano passado, a execução orçamental foi ainda melhor do que tínhamos antecipado e isso permite-nos chegar mais depressa ao cabo das tormentas que temos de virar.

Tem dito e escrito que existe em Portugal um largo consenso em matéria de política externa. Esse consenso não foi posto em causa com a decisão de não expulsar os diplomatas russos em Portugal, sobretudo com o maior partido da oposição?
Não creio. O que estava aqui em causa na reacção na sequência do incidente de Salisbury era uma questão de método no qual houve uma divergência, que eu não valorizo mas o PSD por vezes valoriza. A divergência começa por ser ao argumento de dirigentes do PSD de que foi um erro não alinhar pelo mesmo diapasão da reacção do Reino Unido e dos EUA fundado apenas no facto de eles terem procedido assim. Eu contraponho que a história recente mostra que nós não devemos realizar a nossa opção fundados apenas no que os outros fazem, porque nem sempre os nossos aliados têm o dom da infalibilidade. Houve uma divergência também porque o Governo entende que a posição que tomou é equivalente à que outros países tomaram. A maneira como Portugal reagiu não é muito diferente da da Alemanha. O nosso interesse nacional não é a dimensão das nossas relações económicas com a Rússia, é o facto de sermos um país europeu que se projecta além da Europa.

Entretanto, o Atlântico está a recuperar alguma centralidade perdida. É uma vantagem para Portugal?
A centralidade do Atlântico tem vantagens para o mundo. Aqui existem rotas muito importantes, designadamente de energia, existem democracias muito sólidas e uma cultura democrática disseminada, de países que se conhecem há muito tempo, que se respeitam muito e que têm uma atitude em relação ao mundo que é cautelosa e não é expansionista nem revisionista. A centralidade do Atlântico aumenta a centralidade de Portugal, quer na boa ligação com os EUA, quer por fazer a ponte entre o hemisfério norte e o hemisfério sul.

A questão das Lajes ainda está por fechar com os EUA. Em que pé está esse processo?
Estamos ainda a tratar das consequências da decisão norte-americana de redução do contingente militar. Isso abre espaço para outras coisas, como o Centro de Defesa Atlântico, no qual estamos a trabalhar com os EUA, o AIR Center e outros projectos, mas também tem consequências negativas que é preciso mitigar ou corrigir, porque têm impacto ambiental. Houve alguns progressos significativos na última comissão bilateral de Dezembro, e estamos a trabalhar com as autoridades norte-americanas.

Esse dossier estará no roteiro das comemorações do 10 de Junho nos EUA?
Não, porque ele tem um plano e um contexto próprio, que é a Comissão Bilateral Permanente e a sua avaliação semestral. Mas nós tencionamos fazer em Junho uma grande ofensiva portuguesa nos EUA, a nível diplomático, cultural, político e económico. Estamos a trabalhar para que o 10 de Junho seja um momento maior de uma cadeia de acontecimentos nos quais haverá fóruns económicos, contactos com empresas, apresentações de artistas e formas culturais portuguesas, reuniões da rede de lusoeleitos nos caucuses, contactos com as comunidades…

E com as autoridades norte-americanas ao mais alto nível…
Naturalmente, quando preparamos uma ofensiva diplomática, temos o cuidado de trabalhar com as autoridades desse país. De resto, não é a mim que me compete dar as notícias que não são exclusivamente minhas.

O seu mandato tem sido marcado por uma forte ligação com a Presidência da República. Como tem sido essa relação?
Sim. Ninguém me pode fazer nenhum reparo a nível da relação institucional, nomeadamente com nenhum presidente da República com quem já trabalhei enquanto ministro de diferentes pastas. Mas no caso do professor Marcelo Rebelo de Sousa há um acréscimo muitíssimo importante: não imagina o valor que o Presidente dá à nossa política de proximidade com as comunidades portuguesas. A maneira enfática, genuína, calorosa, afectiva, mas também desafiadora, interpeladora que o Presidente da República coloca em qualquer contacto com os portugueses no estrangeiro contribui enormemente para tornar mais eficaz a política externa portuguesa nesta dimensão das comunidades. Por outro lado, tem havido um alinhamento quase palavra a palavra entre o que o Governo diz em matéria de política externa e o que Presidente diz e faz, o que reforça o conteúdo nacional e a maior projecção dessa política.

Outro dos temas centrais das suas preocupações é oda saída do Reino Unido (RU) da UE. O que é que Portugal já tem garantido para o pós-“Brexit”?
O mais importante foi ter conseguido chegar a acordo sobre os direitos dos cidadãos hoje residentes, sejam europeus no RU, sejam ingleses na Europa. A regra diz que só quando o acordo estiver concluído é que tudo fica fechado, mas não há nenhuma razão para receios neste momento. Ainda aguardamos pelo futuro regime de imigração do RU, que também nos interessa. Quanto aos compromissos financeiros, o RU já concordou connosco e a nossa insistência essencial agora é tentar construir um acordo futuro, no plano económico, comercial e de investimento o mais próximo possível: quanto menos taxas alfandegárias e restrições ao investimento houver, melhor. O RU está entre os nossos cinco maiores fornecedores e cinco maiores clientes e isso interessa-nos directamente.

E quais são as suas maiores preocupações?
Há outras questões que parecem técnicas ou menores mas não são. Um exemplo é o acordo sobre a aviação civil porque o RU é o nosso primeiro mercado emissor de turistas e eles vêm de avião. O RU ainda não conseguiu explicar-nos bem o que pretende. Há uma área de indefinição: não podemos querer a maior liberdade possível para os bens e serviços e não a querer para as pessoas. O RU diz que não quer uma união alfandegária com a UE, mas então o que querem? É nessa fase que estamos. Mas as negociações têm corrido de forma e com resultados melhores do que eu no início esperava. O papel de Portugal e de outros países foi sempre dizer que não queria punir o RU, mas respeitar uma decisão e conseguir o melhor acordo possível para ambas as partes.

O que é que tem contribuído para que Portugal tenha chegado a diversos cargos internacionais de que o corolário é a eleição de António Guterres para a ONU?
A influência internacional de Portugal é maior do que a que resultaria de uma projecção linear da dimensão da população ou da riqueza do país. Há três coisas que explicam essa influência internacional, sobretudo na direcção de organizações internacionais. A primeira é esta maneira de agir dos portugueses e o lado muito profissional da nossa diplomacia, até porque não temos o hábito de mudar embaixadores quando mudam governos. A segunda é o facto de nós irmos provando bem nos cargos ou missões que vamos desempenhando. E a terceira é a prudência com que gerimos estes processos: somos muito parcimoniosos nas candidaturas que apresentamos e só o fazemos quando consideramos que temos bons candidatos e bons programas.

Como está a correr a candidatura de António Vitorino à presidência da Organização Internacional para as Migrações (OIM)?
Está a correr bem, ainda não entrámos na fase mais importante da campanha porque até ao fim de Abril podem apresentar-se candidaturas. Neste momento há três candidatos: um português, a actual directora-geral adjunta, da Costa Rica, que é uma candidatura muito forte, e um norte-americano, sobre o qual achamos que, com a actual posição americana face às migrações, não faz grande sentido que os EUA continuem a ter a posição de primazia que têm tido. É uma campanha muito difícil e complexa, mas primeiro vamos ver quantos candidatos realmente existem.

Em termos das políticas europeias, há alguma em que haja uma marca portuguesa clara?
As coisas vão fazendo o seu caminho. Dou-lhe três exemplos. Portugal foi dos primeiros países a definir uma linha clara, com apoio unânime do Parlamento e da sociedade, a favor de tratar os refugiados nos termos do direito internacional. Temos esse crédito. Quando se discutiu a prevenção do terrorismo e da violência extrema, fomos os primeiros a dizer que isso implica a utilização de diferentes políticas, incluindo instrumentos sociais e de reabilitação urbana que permitam mitigar os guetos onde a radicalização tantas vezes se faz. Essa semente já está no próximo quadro financeiro plurianual. Terceiro exemplo, para não ir mais longe: Portugal é o primeiro país a acordar com a Comissão Europeia o lançamento de um projecto-piloto de qualificação profissional ao abrigo do novo instrumento de apoio comunitário a reformas que queremos lançar com pelo menos 25 mil milhões de euros no próximo quadro plurianual. Em Março, o presidente Juncker e o nosso primeiro-ministro assinaram a declaração política, o que torna Portugal o primeiro país a testar essa nova forma de apoio às reformas verdadeiramente estruturais.

Fala por diversas vezes na singularidade portuguesa e no potencial de Portugal como nação global. Em que consiste esta singularidade?
Significa que Portugal é um país europeu que não se reduz à Europa, é um país da NATO e tem muito bons contactos e conhece bem o Atlântico Sul. Portugal é um país singular também pela sua história, pela língua que partilha com outros, pela presença das suas comunidades que estão registadas em 178 países diferentes do mundo e pela forma como se exprime, designadamente nas Nações Unidas. Há poucos países no mundo que acumulam estas características: ser claríssima a sua inserção – somos europeus e somos do Atlântico Norte – e ser também claríssimo que temos uma facilidade de comunicação com muitas regiões do mundo.

E também pela dimensão de valores com os quais se inscreve como construtor de pontes e como representante da diplomacia pela paz e direitos humanos?
Sim, há depois uma singularidade da política externa portuguesa. Portugal não é uma grande potência, mas é um país que é uma voz muito fácil e muito activa na representação dos interesses de micro, pequenos e médios Estados. E isso é-nos reconhecido, das Caraíbas ao Pacífico, na Europa e em África. Portugal é um país que cultiva o multilateralismo e que se sente bem nas organizações multilaterais, desde as Nações Unidas e as suas agências até organizações regionais, como a Cimeira Ibero-Americana, a CPLP ou o Conselho da Europa. E é um país conhecido pela forma não-confrontacional como actua e pela forma como tende a privilegiar a solução diplomática e pacífica dos diferendos e a respeitar os argumentos dos outros. Gosto de dizer que nós inscrevemos os direitos humanos como valores essenciais da nossa política interna e externa, mas não damos lições de moral.

Porque é que lançou este livro, sistematizando intervenções feitas como ministro dos Negócios Estrangeiros?
O mais importante nesse livro são essas ideias simples: a proposta de olhar para a política externa também a partir da cultura e da história. Em segundo lugar, sublinhar que a relação das comunidades é um elemento central da política externa portuguesa e para tal é preciso perceber a mudança que está a ocorrer na emigração portuguesa: é trazer os mais novos, os mais qualificados, os profissionais, os quadros portugueses que vivem pelo mundo fora também para o centro da nossa política. E o último elemento, que é uma tese que constantemente repito e que é dizer quais são os principais recursos da influência internacional de Portugal: a língua portuguesa é a nossa grande força global, as nossas comunidades e a densidade histórica que essas comunidades representam. Somos quase por natureza uma nação multilateral. Parafraseando Luís Amado: Portugal vale na Europa o que valer fora dela e vale fora da Europa o que nela valer.

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