Os nossos alunos merecem o melhor!

Infelizmente para o nosso país, a Matemática está hoje a ser utilizada como arma de arremesso na luta política.

No dia 28 de Março passado, a opinião pública portuguesa foi surpreendida com uma autoproclamada catástrofe no ensino da Matemática. No entender do secretário de Estado João Costa, que sobre isso se pronunciou a pretexto da publicação pela DGEEC de um relatório sobre indicadores escolares no 3.º ciclo, tal “problema passa pelos programas”, pois “houve uma antecipação de conteúdos”, estando a “ser dados aos alunos do 3.º ano conteúdos que antes eram dados aos alunos do 5.º ano”, sendo necessário “constituir uma equipa para olhar para os programas” para “agir o mais depressa possível”.

É natural que o cidadão comum fique perplexo com estas afirmações. Não tem sido, afinal, opinião unânime dos agentes do sistema educativo que todos os indicadores de sucesso em Matemática têm vindo a melhorar, alguns deles espectacularmente, na última década e meia? Como é possível que, da noite para o dia, se descubra que afinal se vive um estado de emergência e que, mais uma vez, é preciso mudar tudo?

Porque as discussões sobre Educação facilmente são contaminadas por ideias preconcebidas, é sempre boa ideia discuti-las com base em dados factuais. Ora, se fossem os novos Programas e Metas de Matemática, que entraram em vigor a partir de 2013/14, a fonte principal dos problemas nesta disciplina, isso teria de ser visível em todos os indicadores que deles dependessem. É isto o que se observa? Não!

Consideremos por exemplo o que se passa com a retenção escolar. Uma vez que o relatório da DGEEC lida com o que se passa no 3.º ciclo, vejamos qual a situação no final desse ciclo (9.º ano). O que se verifica é que as taxas de retenção diminuíram para cerca de metade no quinquénio correspondente (2011/12-2015/16). Boa parte deste sucesso deve-se aos enormes progressos nos resultados da Matemática. Neste caso, claramente, os novos Programas e Metas não fazem parte do problema – mas sim da solução.

Como segundo exemplo, consideremos o que se passa com o desempenho de Portugal nas grandes avaliações internacionais, PISA e TIMSS, realizadas em 2015. No PISA, que testa alunos de 15 anos, Portugal registou progressos extraordinários a Matemática, estando pela primeira vez acima do nível médio da OCDE.

Pode pensar-se que os alunos testados no PISA 2015 terão sentido apenas um efeito marginal dos Novos Programas e Metas. Contudo, nos testes TIMSS, para alunos de dez anos e específico para Matemática, metade do percurso escolar já foi feito de acordo com as Metas (dois anos em quatro). Ora, no TIMSS o progresso ainda foi mais extraordinário. Os nossos alunos de dez anos classificaram-se no primeiro terço da tabela; Portugal ficou à frente da sempre citada Finlândia e da maioria dos países da UE e protagonizou a maior subida global da história do TIMSS. Portugal é hoje um caso de estudo na comunidade internacional.

Diminuição das taxas de retenção para metade e sucessos espectaculares nos estudos comparativos internacionais serão compatíveis com alegados “graves problemas nos programas”? De forma alguma. O alarmismo a este respeito revela grande ligeireza de análise e, se levado à letra, pode ter consequências desastrosas. Existem sintomas de algo; mas o diagnóstico não faz sentido – e o tratamento proposto pode matar o doente.

Na realidade, os curricula escolares portugueses são modernos, ricos e bem estruturados, e estão ao nível dos leccionados nos países com os quais devemos comparar-nos. Nas palavras de João Marôco, até há bem pouco responsável do IAVE pelos estudos internacionais, “o alinhamento dos nossos curricula com o preconizado pela IEA no primeiro ciclo é quase perfeito (conteúdos e anos!)”; vejam-se a este propósito os relatórios do IEA – TIMSS de 2015 aqui, aqui e aqui. No caso do secundário, o Programa inspira-se explicitamente no TIMSS Advanced, estando contudo, apesar da ruidosa retórica em contrário, ainda abaixo do preconizado pela recomendação do TIMSS Advanced.

Os actuais Programas seguem as mais modernas e avançadas recomendações internacionais e ainda não concluíram sequer um ciclo completo de funcionamento. Faz algum sentido substituí-los? Ou as recomendações internacionais só são importantes quando coincidem com os pré-juízos ideológicos dos governantes?

Aquilo que o relatório da DGEEC veio revelar foi que, no quinquénio 2011/12 a 2015/16, cerca de um terço dos alunos conclui o 9.º e entra no secundário com nota negativa a Matemática; além disso, a Matemática é a disciplina em que a recuperação futura de uma nota negativa é mais difícil.

Estes dados quantitativos, disponíveis pela primeira vez, não são em si mesmos surpreendentes. Eles reflectem características estruturais da Matemática, nomeadamente o seu carácter inexoravelmente cumulativo – facto que não é de hoje, nem é específico do nosso país: sempre houve alunos que escolhem Humanidades no secundário para fugir à Matemática. O que este estudo traz de novo é o conhecimento da extensão desse problema, bem como dados concretos para saber onde e como agir. É muito importante, por exemplo, saber quais as regiões geográficas nas quais o problema da dificuldade de recuperação mais se manifesta de forma a nelas concentrar recursos educativos.

E é fundamental compreender que os actuais Programas, também aqui, não fazem parte do problema – mas sim da solução.

Infelizmente para o nosso país, a Matemática está hoje a ser utilizada como arma de arremesso na luta política. Aquando da discussão pública dos novos Programas e Metas, em 2013, algumas forças de reacção manifestaram-se com grande animosidade. Fizeram profecias de desgraça em relação aos testes PISA e TIMSS 2015 (que não podiam estar mais erradas) e, colando-se ao clima de contestação política generalizada, declararam que “o novo Programa terá de cair quando o Governo cair”. Se a total desconexão das suas previsões com a realidade não as fez reconhecer o absurdo desta agenda, os ventos políticos colocaram entretanto no seu caminho ouvidos pouco conhecedores dos problemas da Matemática mas muito dispostos a escutá-los. 

Já assistimos, desde 2015, à eliminação das avaliações externas no 4.º e 6.º anos por mera transacção política e sem qualquer fundamento educativo. Estão em curso “flexibilizações curriculares” que permitem eliminar 25% dos conteúdos lectivos ao longo de todo o percurso escolar. Os manuais escolares deixaram de ser certificados (se tem um filho no 12.º ano, sabe que ninguém validou o conteúdo do manual adoptado, apesar de o Programa ser novo e tal ser obrigatório por lei?). Começa a falar-se em acabar com o exame de 9.º ano, talvez mesmo o de 12.º ano.

Será muito triste se os Programas e Metas de Matemática forem as próximas vítimas desta insaciável sede da reversão pela reversão que nos faz deslizar pelo plano inclinado do facilitismo. Os nossos jovens merecem mais, e não menos; merecem melhor, e não pior.

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