Uma directora regional de Cultura que “não aparece, não vê, nunca se interessou”

Celeste Amaro elogiou recentemente uma companhia de teatro que “não incomoda a administração central” com pedidos de apoio. No sentido inverso, as estruturas locais queixam-se do seu persistente desinteresse pela actividade cultural da região.

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Celeste Amaro foi deputada do PSD na Assembleia da República entre 2009 e 2011 DR

Há uma distância a separar a directora regional da Cultura do Centro, Celeste Amaro, dos criadores artísticos da região. O PÚBLICO falou com os responsáveis de várias estruturas culturais que, mesmo quando referem a normalidade da relação institucional, notam o desinteresse da responsável em relação ao seu trabalho. A descrição mais comum é não haver registo da presença de Celeste Amaro nas apresentações públicas dos espectáculos e das actividades que desenvolvem.

“Não, não temos memória de ver a senhora directora na programação do Teatro Viriato”, informa por email a directora de uma das principais instituições culturais de Viseu, Paula Garcia. António Augusto Barros, da Escola da Noite (Coimbra), é mais detalhado: “Não aparece, não vê, nunca se interessou. Que me lembre, veio uma vez ao teatro para uma iniciativa da própria [então] delegação regional.” O director artístico do Teatro de Montemuro, Eduardo Correia, fala de um relacionamento “meramente institucional”. E no restante? “Não há proximidade. Nunca tivemos a presença dela em qualquer iniciativa da programação, nem no Festival Altitude”. Isto apesar “dos convites”. 

Dos agentes culturais contactados, o responsável da ACERT de Tondela, José Rui Martins, é o único a mencionar a presença “episódica” da directora. “A última vez terá sido em 2016”, quando a companhia assinalou 40 anos. Descreve a relação com Celeste Amaro como “afável”, mas sublinha que isso mesmo “não se consubstancia, depois, no acompanhamento daquilo que realmente” a companhia faz. Isto significa que não existe um seguimento “que permita dialogar sobre os problemas” que a ACERT enfrenta.

Teatro Viriato, ACERT Tondela, Teatro Montemuro e Escola da Noite foram as estruturas da Região Centro mais financiadas pela DGArtes no ano de 2017.

"Não incomodar"

Celeste Amaro não quis falar sobre esta questão ao PÚBLICO. “Não vou entrar por aí outra vez.” “A minha relação sempre foi boa com toda a gente”, faz questão de destacar, prosseguindo na terceira pessoa: “A directora regional tem relação com toda a gente da Região Centro, criadores artísticos, gente ligada à dança, ao teatro, à música, ao património, câmara municipais”. Diz também não querer alimentar “mais especulação” sobre as polémicas declarações que no início deste mês levaram o Manifesto em Defesa da Cultura e outros artistas a lançarem uma petição que pede a sua demissão, entretanto subscrita por 1251 pessoas.

As suas reservas relativamente ao financiamento público da criação artística ficaram patentes quando, numa visita ao grupo Leirena Teatro, se regozijou por encontrar uma companhia que “não incomoda a administração central” a pedir dinheiro. Dias depois, um autocolante vermelho e branco com a inscrição “Não incomodar” era afixado à porta da sede da Direcção Regional de Cultura do Centro (DRCC), em Coimbra.

A directora veio depois justificar-se, afirmando que “em circunstância alguma” quis “pôr em causa o trabalho desenvolvido por todos os profissionais de teatro, independentemente das formas que encontram para financiar a sua actividade”.

O Leirena veio igualmente emitir um comunicado em que informa que convidou a responsável em “desespero de causa”, para que esta pudesse “conhecer e avaliar” o trabalho da companhia e inteirar-se das suas dificuldades.

Mas já antes Celeste Amaro produzira afirmações polémicas: quando questionada pelo PÚBLICO acerca da transferência para a DRCC, a pedido desta, do ex-director do Museu da Presidência Diogo Gaspar, suspeito de desvio de bens, peculato, abuso de poder e tráfico de influência, considerou que tal condição era irrelevante, uma vez que “metade dos portugueses são arguidos”.

Apesar da contestação, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, considerou entretanto que as declarações de Celeste Amaro “não têm a gravidade” que lhes foi atribuída. Mas fez também notar, em resposta ao PCP e ao Bloco de Esquerda (que pede a sua demissão), que o mandato da directora regional está a terminar. Seja como for, Celeste Amaro terá ainda de passar pela Comissão Parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, depois de uma proposta do PCP para ouvir a responsável ter sido aprovada por unanimidade. A audição ainda não está agendada.

“Vêm-me pedir dinheiro”

Não é a primeira vez que Celeste Amaro está à frente da DRCC. Também não é a primeira vez que entra em confronto com a comunidade artística. Antes de ser nomeada pelo secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, para o lugar que actualmente ocupa, em 2011, já tinha passado pelo braço cultural do Governo no Centro, que na altura tinha a designação de delegação. Foi nomeada em 2002, com a entrada do Governo PSD/CDS, e saiu em 2005, com chegada do PS ao poder.

A primeira passagem ficou marcada, em 2003, pela organização da operação Coimbra Capital Nacional da Cultura (CNCC), presidida por Abílio Hernandez. Contactado pelo PÚBLICO, este prefere manter a reserva sobre acontecimentos de há década e meia e os seus contornos. Refere apenas que as suas relações com a então delegada regional da Cultura do Centro “foram más”. “E disso dei conta no relatório que enviei ao ministro da Cultura.”

Esse documento nunca foi tornado público e o agora professor jubilado da Universidade de Coimbra não quer falar sobre o seu conteúdo. Todavia, menciona que houve “momentos de grande crispação, que passaram além da simples divergência de visões sobre a cultura”. O responsável entende que a delegada praticou actos “acintosos”.

Uma publicação editada pelo Conselho da Cidade de Coimbra com o título E depois da Festa? regista um debate que encerrou a CCNC, em Janeiro de 2004. Celeste Amaro chamava então a si a responsabilidade de “fazer os pagamentos” e assumia que esse tinha sido um ponto de discórdia. “Várias vezes, tanto eu como o professor Abílio nos digladiámos quanto a essas questões.” No encontro, a delegada regional terá assumido uma postura semelhante à que lhe valeu as críticas mais recentes. “A minha formação é em Letras, mas toda a vida trabalhei com dinheiro, porque sei que, quando vêm ter comigo, é para me pedir dinheiro.”

Destacava também o papel dos agentes culturais, “os verdadeiros mecenas da Capital da Cultura”. A responsável sublinhava que “grande parte deles” estaria ainda “à espera do dinheiro pacientemente, sem fazer greves, sem fazer grandes alaridos, sem dizer muito mal”. Pouco mais de meio ano antes, no início de Maio de 2003, os jornais da cidade davam conta da suspensão de pagamentos relativos à programação da CCNC para a área da música.

Abílio Hernandez subscreveu a petição agora posta a circular, por este marcar “uma posição de rejeição em relação a declarações que não podem ser amaciadas”: “A ideia de que os artistas vivem à custa do Estado é de menosprezo em relação a uma actividade que representa um serviço público ao país.”

Uma questão de currículo

Em 2011, Celeste Amaro foi nomeada para substituir na DRCC o professor catedrático António Pedro Pita, que ocupava o cargo desde 2005 e se afastava com a entrada em cena do Governo de Passos Coelho. Após a criação da CRESAP, a responsável concorreu em 2013 ao cargo que já ocupava. Integrou a lista de três finalistas e Jorge Barreto Xavier escolheu-a para assumir um mandato de cinco anos. Num artigo de opinião que publicou há duas semanas no PÚBLICO, e em que considera “infelizes” as declarações da directora, o ex-secretário de Estado da Cultura sustenta, perante as alegações de que apenas a proximidade de Celeste Amaro ao PSD explica a sua escolha para o lugar, que “a cor política dos funcionários não pode ser a bitola para o seu recrutamento, nem para a sua exclusão”.

No entanto, às críticas sobre a actuação da directora regional, António Augusto Barros junta a opinião de que a responsável “não tem nem nunca teve condições” para ocupar o cargo. “Nem eu nem ninguém lhe conhece currículo”, acrescenta.

A responsável não quis prestar declarações sobre o assunto, mas o seu percurso acompanha de facto o do PSD, partido pelo qual foi deputada entre 2009 e 2011. Antes, nas décadas de 80 e 90, desempenhou várias funções em gabinetes dos Governos de Cavaco Silva. As ligações familiares apontam no mesmo sentido. É casada com o presidente da Câmara Municipal da Guarda, Álvaro Amaro, o presidente dos autarcas sociais-democratas.

Celeste Amaro é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e começou a actividade profissional em 1980, como professora de Português e Inglês na Escola Secundária de Pombal. Pouco tempo depois, em 1981, com a Aliança Democrática (PDS, CDS e PPM) no poder, chegaria à Câmara Municipal de Coimbra para auxiliar o vereador da Cultura. Em 1986, era destacada para o gabinete do secretário de Estado da Juventude, António Couto dos Santos. Passou pelos serviços sociais do Conselho de Ministros entre 1992 e 1995 e desempenhou ainda funções no gabinete do ministro adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Luís Marques Mendes, em 1995.

O seu percurso na Câmara de Coimbra, à qual regressou nesse ano, foi essencialmente passado nas divisões de cultura e turismo, entre as quais a própria destaca “funções de apoio técnico a organizações recreativas, culturais e desportivas do concelho”, tais como a negociação de um protocolo entre a autarquia e a Companhia Nacional de Bailado. Constam também do seu percurso actividades como a organização do Concurso Internacional de Guitarra Clássica de 1982-1983 ou das Festas da Cidade de Coimbra e da Rainha Santa Isabel, de 1996 e 2000. No currículo que serviu de base à sua nomeação em 2002, a responsável incluía ainda a organização da quinta e da sexta edições da Exposição Canina Nacional de Coimbra.

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