A casa erótica, o menino da Cartola e o 2 do rio

Fomos à boleia de um festival de gastronomia e artesanato, que é sempre um bom motivo para ir a Miranda do Douro. Mas não são necessários pretextos de agenda para ir até ao planalto mirandês. As tradições vivem-se à flor da pele durante todo o ano e nas arribas do Douro as vertigens da terra e da história são contínuas.

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Joana Gonçalves
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Quando o festival Sabores Mirandeses chega a Miranda do Douro nada fica igual. Sobretudo desde que um canal de televisão começou a transmitir um programa em directo a partir da cidade no topo das arribas durienses. “Seis horas? Madre mia!”, surpreende-se uma espanhola perante o palco já montado na praça D. João III. Ainda faltam mais de 24 horas para o início da transmissão, mas o centro histórico de Miranda do Douro já está transtornado. À chegada, avisam-nos de uma rua interdita, na praça, um enorme palco esconde a fachada seiscentista do Museu de Terras de Miranda. Não é um fim-de-semana qualquer em Miranda do Douro e ainda antes do meio-dia de sábado vem um grupo de pauliteiras instalar-se na praça com os seus lhaços. Três — tão repentinamente quanto chegam, partem, deixando a pairar sobre todos o espírito radicalmente ancestral deste território que a música e a dança conjuram. Mais regulares são os visitantes do outro lado da fronteira: “Ao fim-de-semana estamos sempre à espera de espanhóis”, reconhece uma das funcionárias do museu, “sem eles Miranda não cresce”. E tem crescido, avalia: “Estamos no centro histórico, a parte que era cercada pela muralha. Miranda era só isto. Lá fora tem crescido muito.”

Mas é cá dentro que todos vêm. Um grupo de dezenas de pessoas, claramente saídas de uma camioneta turística, atravessa a praça. Vão directas à catedral não se detendo, pelo menos por enquanto, nas duas lojas que convivem na praça. São ao “gosto espanhol”. “A maior clientela é espanhola, isto é o que procuram”, diz-nos a proprietária renitente de uma delas, montra com porcelanas Vista Alegre e atoalhados, interior com pijamas, faqueiros, panelas, vinho do Porto, t-shirts. A segunda é ainda mais ecléctica. “Móveis, electrodomésticos, candeeiros, têxteis do lar, coisas do dia-a-dia”, concretiza Paula, a empregada. Os móveis e electrodomésticos estão na outra loja, “lá em baixo”, que é como quem diz, fora das muralhas — “os espanhóis levam muitos móveis”, explica a proprietária Maria Alice Ferreira. Aqui temos uma espécie de best of da região: de brinquedos tradicionais aos candeeiros e panelas, sem esquecer panos da louça, toalhas de mesa, rendas, colchas, objectos de cobre, ferro forjado, madeira e vime e a cutelaria.

Nas ruas vivemos o presente, no museu um relance de como se vivia — vive? — no planalto mirandês. Agricultura e pecuária, âncoras centrais da economia e subsistência da região, uma cozinha típica, o coração da casa, onde “se nascia e se morria”. Um andar acima, o mundo da lã (e do linho: “Já Estrabão dizia que nesta área se fazia o melhor linho do império [romano]”), com manequins vestidos com o traje de mulher, o traje de jovem (quanto mais jovem, mais colorida) e a inconfundível capa de honra que de protecção aos boieiros e pastores nesta terra de “nove meses de Inverno e três de inferno” se tornou um símbolo da região. Mais adiante, as máscaras de rostos distorcidos em esgares excêntricos e cores berrantes, ícones das chamadas festas de Inverno, e as danças e festas. Novamente, os pauliteiros.

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Vêmo-los várias vezes durante o fim-de-semana. A prepararem-se para espectáculos, a dançarem. A dança guerreira de raízes greco-romanas (segundo algumas teorias) é um ritual quase hipnótico e tão ritmado que é difícil controlar os pés que teimam em acompanhar o compasso dos paulitos ao som de gaita-de-foles e caixa. Cada dança é um lhaço, a que corresponde uma música e uma letra, “normalmente em mirandês”. Há cerca de 50 lhaços e alguns parecem mesmo retratar momentos de uma batalha; outros estão mais ancorados nas realidades da terra como o “la yerba” ou “la rosa”. Ou são, ainda, históricos, Mirondum, Mirondum, Mirondela/ Mirondum se fúe a la guiêrra (...).

Miranda do Douro foi-se à guerra dos Sete Anos (que aqui ficou conhecida por Guerra do Mirondum) e o seu castelo foi-se pelos ares. No acosso espanhol à cidade muralhada, um projéctil caiu sobre um armazém onde se guardava pólvora: as muralhas e a torre de menagem do castelo ruíram, 400 pessoas morreram. Hoje, o que resta da alcáçova do castelo de Miranda é uma bela ruína a mirar o Fresno, o outro rio da cidade, que ensaia coreografias em jactos de água numa represa para mais à frente se diluir no Douro. E o antigo pátio de armas é um parque de estacionamento a dois passos da Rua Mouzinho de Albuquerque, espinha dorsal do núcleo histórico, onde o comércio mais abunda.

Mas é na Rua Costanilha e satélites que o carácter medieval de Miranda parece irredutível — quando fica banhado pela luz amarela dos candeeiros de ferro forjado quase esperamos que surjam cavaleiros ou carruagens apressados. O casario quinhentista de pormenores manuelinos forma um entramado mais ou menos conservado, às vezes inesperadamente erótico, como a Casa das Quatro Esquinas — medieval, é de granito integral, tem quatro janelas a fazer esquina (duas em cada andar), porém o destaque é para os dois cachorros, um simbolizando a luxúria e o segundo Cronos, o deus grego do tempo: a primeira é representada por um cão que com a língua toca os órgãos genitais de uma mulher; ou imprevisivelmente profano, como antiga igreja setecentista dos Frades Trinos transformada na biblioteca municipal.

E, depois, há o “exagero”, como comenta alguém. “Ninguém espera isto aqui.” Mas “isto”, a igreja matriz, é também a antiga Sé de Miranda do Douro, herança do período em que a cidade foi sede de diocese, entre 1545 e 1780 — este é caso para inverter o ditado popular: foram-se os dedos, ficaram-se os anéis. A agora Concatedral de Miranda do Douro exibe-se orgulhosa num extremo do pequeníssimo planalto que é este centro histórico, entre as ruínas do antigo palácio episcopal (o resto do claustro, na sua sucessão de colunas onde ainda se apoiam os arcos é uma espécie de alegoria à transitoriedade do poder — e da vida) e as vertigens do Douro (690 metros), erguida como se fosse o diabo a olhar para Castela, para parafrasear Miguel Torga.

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E se a vista é irresistível, entrar no templo de feições severas plasmadas na fachada granítica concluído na última década do século XVI guarda algumas surpresas. Desde a “carranca da Sé”, plasmada no órgão setecentista, medida de (falta de) beleza: “És mais feio do que a carranca da Sé”, diz-se por estas paragens; ao retábulo-mor onde a imagem do bispo mostra desejos bastante terrenos (as vestes ostentam desenhos de mulheres de seios exuberantes); sem esquecer a “loja maçónica” demarcada na área do cadeiral do cabido por ladrilhos negros e brancos. E o incontornável Menino Jesus da Cartolinha (Nino Jasus de la Cartolica), um dos ícones de Miranda do Douro, “como a catedral e as arribas”.

A figura de pequeno tamanho dá corpo à lenda que conta que durante um cerco espanhol à cidade, quando a população exaurida pela fome e pelas doenças se preparava para a rendição, começou a surgir um menino em vários pontos da muralha a instilar ânimo aos habitantes. Foi bem-sucedido, mas nunca foi encontrado. O milagre foi atribuído ao menino Jesus e em sua honra esculpiu-se uma imagem vestida com trajes fidalgos — actualmente, as roupas em miniatura que compõem o seu vasto guarda-roupa (a tradição diz que raparigas solteiras devem dar as meias e as camisas) são também parte da curiosidade.

Os filhos do rio

De tanto rondarmos o Douro, sabíamos que em algum momento nos renderíamos. E é assim que, ao fim da tarde, vemos o sol jogar às escondidas nas escarpas durienses, mostrando-se e escondendo-se ao ritmo das curvas do rio até que transforma Miranda do Douro, altaneira no topo das arribas, em sombras. Já se está a pôr e nós a terminarmos o cruzeiro ambiental promovido diariamente pela Estação Biológica Internacional (EBI) de Miranda do Douro. Entre a barragem de Miranda e o Vale das Águias subimos e descemos o Douro Internacional, sempre com Portugal de um lado e Espanha do outro: o que o passado separou o presente e o futuro juntam neste projecto transfronteiriço onde se miram os dois parques naturais que têm o Douro como coração. Laura, a guia, é um paradigma: “Sou do rio”, apresenta-se, concretizando, “filha de pai português e mãe espanhola”.

Ainda não embarcáramos e já nos haviam lançado o desafio do “2”. “Consegues ver o 2 nos penhascos?”, dizem-nos, apontando um afloramento rochoso amarelo do lado espanhol (a cor deve-se aos líquenes, aqui em grande quantidade e variedade, o que é sinónimo de ar, livre de contaminação). Estamos no sítio certo, vemo-lo à primeira — de outras perspectivas não foi tão óbvio. Voltaremos a ouvir no barco a maldição (?) do “2”: os solteiros que não o vêem não casarão, os casados que não o vêem estão a ser traídos.

À primeira curva, fica para trás a “civilização”. “Agora é só natureza”, anuncia Laura, em espanhol e português — afinal, esta é “uma expedição transfronteiriça”. Com resultados imprevisíveis: “Isto não é um zoo”, avisa, “ver espécies depende da sorte” (pode contar-se sempre com o “milagre” da azinheira de quase 200 anos e raízes na rocha). Quatro corvos imediatamente fazem uma aparição, depois uma águia que o capitão avista, mas todos os outros perdemos, passamos a “poça das lontras” e nem uma surge. Depois os ninhos: de cegonhas negras, “abandonado pelo efeito da caça furtiva” (desde o início do projecto estão a recuperar, porque são vigiados), de um casal de águias-reais e novamente de cegonhas negras. Não vemos nenhuma, são caprichos normais da natureza. Menos normal é a falta de chuva que eclipsa duas cascatas “de Inverno” (depois destes dias chuvosos podem ter feito aparição), uma das quais, a da “Mangueira”, “protegida” pela “Rocha do Urso” e, a crer em Laura, “um dos efeitos naturais mais bonitos” deste troço — “somente o ruído é impressionante”. Mesmo antes desta, a chamada “área temática do Vale da Águia” deixa um relance da vida de antanho: uma cabana no cimo de uma escadaria de pedra era a casa de quem cultivava os socalcos arrancados aos rochedos.

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Desta façanha do engenho humano temos ampla vista desde o miradouro de São João de Arribas, uma “janela para o Douro”, num dos poemas de Domingos Raposo. Em pleno Parque Natural do Douro Internacional, a vista do canhão do rio é impressionante, com as suas curvas abruptas, mas a mão humana também o é. Se a água aqui cavou durante milénios o granito, os homens cavaram durante séculos socalcos nas encostas vertiginosas onde o acesso parece impossível. Aí ainda se trabalhava quando Domingos Raposo tinha dez anos: oliveiras, figueiras, amendoeiras, vinha e centeio, moinho no rio e caminhos inventados à custa de muito suor.

Domingos Raposo é um homem do Douro, de Miranda e do mirandês. O seu nome é sinónimo da recuperação do mirandês e do seu reconhecimento como segunda língua oficial portuguesa — é ele quem nos guia até ao miradouro de São João de Arribas, bem perto da sua casa de turismo rural Puial de l Douro em plena Aldeia Nova (a segunda aldeia portuguesa banhada pelo Douro — a primeira é Paradela). Nova porque a “velha” situava-se bem perto do miradouro onde, novamente, nos deixaremos fascinar pelas escarpas do Douro: um castro revelou ocupação humana contínua entre os séculos IX a.C. e X — quando a população se transferiu mais para cima. Domingos entusiasma-se a apontar os restos do baluarte entre a vegetação rasteira destas altitudes, a relatar a sucessão de povos que aqui se instalaram, a enumerar os achados arqueológicos. Dos romanos ficou a lenda de um pote de ouro por aqui enterrado e várias epígrafes — fora o que foi para museus. E o mais evidente: a lápide honorífica a um tal Emílio Balaeso, que seria originário daqui e terá sido o porta-estandarte da ala sabiniana durante as campanhas na Britânia , cuja cópia enfrenta o canhão do Douro. O original foi encontrado, juntamente com colunas romanas, na pequena capela dedicada a São João Baptista, cujo culto aqui se perde no tempo e é celebrado em Maio com missa campal, convívio. Hoje a tranquilidade é total quando nos sentamos no muro de pedra — será o nosso puial (banco de pedra): “Neste puial de pedra que já foi fraga...”, declama Domingos.

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Os grifos, os abutres do Egipto, as águias e os falcões peregrinos são assíduos destas arribas, mas não os avistamos. Nem nos aventuramos no túnel, algures entre a Aldeia Nova e Vale de Águia, que guarda a que talvez seja “a maior colónia de morcegos da Europa”. Mas encontramos o caminho para Atenor, onde os burros mirandeses têm um dos seus santuários. É aí que a Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) tem a sua sede e um dos centros de acolhimento, o Palheirico. Entre o Néctar, que “nasceu prematuro e tem problemas nas orelhas”, como conta Emanuel Catarino, há seis meses a fazer estágio na AEPGA, e a Noite de Outono, “a última a nascer” — “Adoro-a” — dezenas de outros animais vivem e esperam visitantes (e padrinhos, donativos...). Já foram parte integrante da vida no planalto mirandês, agora a preservação dos simpáticos e dóceis autóctones em vias de extinção passa também pela participação em celebrações comunitárias e em festivais e passeios (como o “Por Tierras D L Rei”, a 24 e 25 de Março) – são verdadeiros encontros com o planalto mirandês à boleia de um dos seus maiores ícones. E nunca as Terras de Miranda parecem mais autênticas.

A Fugas viajou a convite da Turismo do Porto e Norte de Portugal

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