A Dona Margarida é que sabe: não prestamos para nada

A professora Margarida apresenta-se a uma turma de crianças da quarta classe: nós, os espectadores. E arrasa-nos, manipula-nos, humilha-nos. Roberto Athayde escreveu o monólogo Apareceu a Margarida em 1973, Clovis Levi encenou-o agora. A lição dá-se em Serpa, pela companhia Baal17. Sentem-se e calem-se.

A Dona Margarida “não dá autorização para que nada seja feito sem autorização”
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A Dona Margarida “não dá autorização para que nada seja feito sem autorização” José Ferrolho
Três das quatro Margaridas da encenação de Clovis Levi
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Três das quatro Margaridas da encenação de Clovis Levi José Ferrolho
Rui Ramos, director da Baal17, interpreta uma das Maragridas
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Rui Ramos, director da Baal17, interpreta uma das Margaridas e transforma-se no odioso “Führer” José Ferrolho
“Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde, é um dos textos mais vezes encenados fora do Brasil
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“Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde, é um dos textos mais vezes encenados fora do Brasil José Ferrolho

Conseguiu escapar à censura brasileira, em plena ditadura militar, porque a ignorância dos censores levou-os a pensar tratar-se, tão-só, “de uma professora maluquinha e engraçada”, conta Clovis Levi, que esteve dois meses em Portugal para encenar o texto Apareceu a Margarida. A peça estreou-se a 1 de Março, no Cineteatro Municipal de Serpa, e é a 43.ª produção da Baal17, Companhia de Teatro na Educação do Baixo Alentejo. Sexta e sábado, toca para a entrada às 21h30. Não se atrasem, é perigoso.

“Nem entenderam que o texto era sobre eles, sobre o autoritarismo, sobre a intolerância”, disse ao PÚBLICO, no final da estreia do espectáculo, o professor de Teatro na Faculdade de Artes Cénicas do Rio de Janeiro. A peça de Roberto Athayde subiu ao palco numa altura em que a censura “chegou a invadir um teatro no Rio de Janeiro para prender Sófocles!”.

Na divulgação, recorda-se: “A percepção da plateia de que aquela sala de aula era o Brasil dominado pela repressão e pela tortura, aliada à alta qualidade do texto, à riqueza contida na poderosa encenação de Aderbal Jr. e na surpreendente performance da actriz Marília Pêra, deu à peça todos os prémios da temporada e permitiu o início de uma carreira internacional.”

O texto é dos mais encenados fora do Brasil e já passou por cerca de 30 países, incluindo os EUA. Agora, veio desassossegar Serpa. Mas também, mais uma vez, Paris. No dia 5 de Março esteve em cena no Théâtre Antoine e de 29 de Março a 20 de Maio estará no Théâtre de Poche Montparnasse, pela mão da dramaturga Anne Bouvier.

Tensão e humor

São quatro as Margaridas desta encenação de Clovis Levi, que conta com duas actrizes (Bárbara Soares e Sandra Serra) e dois actores (Filipe Seixas e Rui Ramos) de diferentes gerações. Todas interpretadas com garra. A um momento, intimidam o espectador, a outro, divertem-no e a outro ainda desconcertam-no. Com energia e ritmo intensos, dão-nos a conhecer uma mulher contraditória, alucinada, por vezes maternal, mas quase sempre sádica, autoritária e injusta. Cruel mesmo. E a plateia deixa-se ficar, obediente e submissa. A Dona Margarida é que sabe: não prestamos para nada. “É como se vocês não existissem.”

Diz-nos ainda que “não dá autorização para que nada seja feito sem autorização”.

O encenador, doutorado em Teatro (Encenação) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, não poupou os actores, que sobem e descem degraus, trepam a mesa e circulam sem parar, sempre com sapatos de salto agulha (bravo, rapazes!). “Poupar porquê? Eu vim aqui para trabalhar”, diz Clovis, bem-disposto, elogiando a companhia. “Fizeram tudo o que eu pedi. E bem. Estou muito feliz”, diz em vésperas de completar 74 anos.

Alguns dos artistas foram seus alunos na Escola Superior de Educação de Coimbra, onde leccionou Interpretação, Encenação e Guionismo e cujo Curso de Teatro dirigiu entre 2001 e 2012. Nesta peça, usam a técnica rasaboxes, explica numa nota de apresentação, “transitando pelos universos do desejo, riso, piedade, raiva, vigor, vergonha e medo, aversão, surpresa e admiração”. Por conseguinte, “isso levou os actores a um trabalho com forte carga emocional e repleto de transições”. Ou seja, um espelho vívido da complexidade de cada um de nós.

Para maiores de 16

Depois de Serpa, o espectáculo segue para Ourique (16 de Março, Cineteatro Sousa Telles, 21h30), Mértola (17, Cineteatro Marques Duque, 21h30) e Ponte de Lima (24, Teatro Diogo Bernardes, 22h), conta o actor e director da companhia, Rui Ramos, que a dada altura se transforma no odioso Führer. Informa ainda que as escolas com ensino secundário podem solicitar actuações. A peça destina-se a um auditório com mais de 16 anos. Porque se usa bastante vernáculo, se fala de droga, de violência, de poder e de sexo.

“Os jovens que já assistiram ficaram agarrados, amarrados”, descreve Clovis Levi depois das primeiras actuações. “Quando se fala de sexo, ficam todos animadinhos”, diz, lembrando que no Brasil só era permitido para público com mais de 18 anos.

“O mundo vive uma fase aguda de intolerância, destacando-se a intolerância política, a intolerância religiosa e a intolerância sexual”, afirma o também autor de textos para teatro e televisão (O Bem-Amado, da Rede Globo) e ainda de livros infanto-juvenis. Em Portugal, publicou A Cadeira Que Queria Ser Sofá (Lápis de Memórias), ilustrado por Ana Biscaia e vencedor do Prémio Nacional de Ilustração em 2012, e o Beco do Pânico (Calendário, 2009).

Recebeu o Prémio Governo do Estado de São Paulo para Melhor Texto, com a peça Se Chovesse, Vocês Estragavam Todos (co-autoria de Tânia Pacheco), e foi finalista do Concurso Literário Barco a Vapor, Edições SM, 2017, com o livro O Gato de Botas de Sete Léguas.

Em Apareceu a Margarida, diverte-nos, sem deixar de nos apontar o medo, a cobardia e uma pistola (Trump haveria de gostar). Saiam.

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