Qual foi a hora da morte? Os genes podem ajudar a determiná-la

Uma equipa de cientistas – que inclui cinco portugueses – quis perceber como é que os tecidos do corpo humano reagiam depois da morte. E, usando a actividade dos genes, acabou também por fazer previsões sobre o intervalo pós-morte.

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Ilustração de uma molécula de ADN DR

Todos gostamos de um bom policial e do percurso até descobrirmos quem é o criminoso. Nesse percurso, há pormenores determinantes que fazem toda a diferença na acção. Um deles é o intervalo pós-morte – o tempo que decorre desde a morte até à preservação da amostra. E se isso pudesse ser determinado através da actividade (expressão) dos genes nos tecidos do corpo humano? Passemos então dos policiais para a realidade: um trabalho publicado na revista Nature Communications, que inclui cinco cientistas portugueses, respondeu a essa questão e apurou que as alterações na actividade dos genes permitem prever, com alguma exactidão, o intervalo pós-morte.

Este trabalho faz parte do projecto Expressão do Genótipo nos Tecidos (GTEx – Genotype-Tissue Expression, na sigla em inglês), que disponibiliza à comunidade científica uma base de dados sobre a actividade dos genes em tecidos humanos para o estudo da regulação dos genes e da variabilidade genética. O português Pedro Ferreira, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto e principal autor do artigo, faz parte do grupo de análise deste projecto. “O GTEx foi desenhado para obter amostras de um maior número possível de tecidos de indivíduos, de forma a investigar o efeito causal dos genes e das variantes genéticas e assim perceber em que tecidos estes contribuem para a predisposição de certas doenças”, lê-se num comunicado do i3S.

Os cientistas tinham uma questão central nesta fase do projecto. “Queríamos investigar qual o efeito da morte nos tecidos [humanos] e saber até que ponto os tecidos dos indivíduos obtidos pós-morte representam os das pessoas que ainda continuam vivas”, explica Pedro Ferreira sobre os objectivos do artigo na Nature Communications, assinado ainda pelos portugueses Abel Sousa, Patrícia Oliveira, Carla Oliveira (também do i3S) e João Curado (do Centro de Regulação Genómica, em Barcelona).

E ainda houve outra questão: “A ideia principal era perceber como os diferentes tecidos reagiam ao intervalo pós-morte e ao próprio efeito da morte”, diz, acrescentando que já outros estudos indicavam que a actividade dos genes nos podia dar informação relativamente ao intervalo pós-morte. Contudo, os outros estudos analisaram entre três e quatro tecidos e genes específicos, enquanto este trabalho analisou todos os genes do genoma humano.

Para responder a essas questões usou-se uma selecção de amostras do GTEx: fez-se a sequenciação do ARN (ácido ribonucleico, que resulta da transcrição da molécula de ADN) de cerca de 7100 amostras de 36 tecidos de cerca de 540 de pessoas que já tinham morrido. “Tentámos perceber se os genes aumentam a expressão ou a diminuem ao longo do intervalo pós-morte, que categorias de genes mudam e se há uns que nem mudam nada com o intervalo”, indica Pedro Ferreira.

“É totalmente académico”

E como é a actividade dos genes? “Verificámos que muitos genes têm a sua expressão alterada em intervalos post-mortem relativamente curtos, e que estas alterações variam de tecido para tecido. Esta informação vai ajudar-nos a compreender melhor a variabilidade da expressão dos genes e permite-nos ainda identificar os eventos celulares desencadeados pela morte do organismo”, diz Pedro Ferreira no comunicado.

Por exemplo, os cientistas viram que os tecidos dos músculos têm uma resposta mais curta do que outros tecidos, ou seja, alteram-se num intervalo de tempo mais curto nas horas seguintes à morte. Já o fígado ou o cólon têm uma resposta “mais espaçada” ao longo do tempo. “Não têm uma resposta imediata”, destaca Pedro Ferreira. “Significa que essas células conservam durante mais tempo o sinal biológico dos seus genes.” Ou viram ainda que há um gene chamado RNASE2, ligado à degradação dos tecidos, que se altera em vários dos tecidos.

Concluíram então que há genes que se alteram especificamente por causa da morte. Também através de análises a sangue pré-morte e pós-morte perceberam que há características que se alteram como a desactivação da resposta do sistema imunitário, o aumento da actividade dos processos relacionados com necroses das células e da coagulação do sangue.  

Como já tinham respondido à pergunta de como a actividade dos genes mudava em relação ao intervalo pós-morte, os cientistas fizeram “um exercício académico”: será que é possível determinar o tempo que passou desde a morte do indivíduo a partir da actividade dos genes? Para isso, usaram técnicas de machine learning (aprendizagem automática). “Com este modelo, prevemos qual o intervalo [pós-morte] para cada um dos tecidos. Depois, combinando os diferentes tecidos, demos um valor para cada indivíduo”, indica o investigador.

Encontraram assim um subconjunto de cerca de quatro tecidos que são “bons” para essa previsão e tão ou mais informativos do que usando vários tecidos. São o tecido adiposo da pele, a pele, os pulmões e a tiróide.

Esta pode ser uma boa ferramenta para a ciência forense? “ [O modelo] ainda é totalmente académico”, frisa Pedro Ferreira. Além de só ter em consideração as 24 horas a seguir à morte de cada indivíduo, não tem em conta variáveis externas, como a temperatura exterior. “Provavelmente, vamos testar isto em conjuntos de dados maiores para testar a robustez do modelo”, avisa o investigador sobre os passos seguintes neste trabalho, dizendo que, para já, não é um objectivo passar este modelo para a prática. E se um dia passar? “Poderá ser aplicado como uma técnica complementar a outras técnicas.”

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