Sebastião Fernandes (1947-2018), um homem que levou Goa para Lisboa, no prato

Em 1986 abriu o seu primeiro restaurante, o Cantinho da Paz, tornando-se nos últimos 30 anos uma referência da cozinha goesa em Lisboa.

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Gonçalo Português/arquivo

Para os clientes era conhecido como Sebastião. Trabalhou de forma incansável até ao último dia a servir as pessoas. Tinha prazer em fazê-lo e considerava os clientes como família. Sebastião Fernandes chegou a Portugal era um jovem e deu a conhecer os sabores de Goa em Lisboa – onde se tornou uma figura incontornável na cena gastronómica da cidade. Primeiro no Cantinho da Paz e, mais recentemente, no Nova Goa. Morreu na segunda-feira, 29 de Janeiro, aos 70 anos, enquanto conduzia. Os resultados da autópsia ainda estão por chegar, mas tudo indica que tenha sido uma paragem cardiorrespiratória, de acordo com a família. 

Sebastião chegou a Portugal com pouco e construiu um pequeno império de restaurantes. Foi conquistando o gosto dos cliente pela comida genuína e bem confeccionada que servia. Ganhou o respeito de quem servia com a forma carismática como recebia. 

“Tenho óptimas recordações. Dava uma alegria especial ter a refeição servida por ele [no Cantinho da Paz]”, lembra o gastrónomo Duarte Calvão, um dos autores do blogue Mesa Marcada e director da iniciativa Peixe em Lisboa. “Era um trabalhador incansável. Atendia e explicava tudo às pessoas. Quando comecei a escrever sobre estas coisas já era cliente dele há que tempos”.

E valia a pena ouvir as histórias. Contava, por exemplo, como nasceu o Vindalho, um prato que tem, em igual medida, influências portuguesas e indianas e que, por isso, exemplifica uma das principais características da cozinha goesa – uma cozinha de fusão. Ora, as especiarias indianas da receita ribatejana vinha-d'alhos (cominhos e colorau) foram introduzidas na Europa pelos portugueses e, de regresso à Índia, a receita acabou por se transformar no vindalho, que leva também gengibre, malagueta e tamarindo.

Nos anos 90, o Cantinho da Paz era dos poucos sítios em Lisboa onde se podia conhecer uma cozinha diferente – e ao mesmo tempo intrinsecamente ligada à nossa cultura. “Na altura, não havia a diversidade, não havia restaurantes japoneses e mesmo restaurantes italianos havia pouquíssimos”, descreve Duarte Calvão. O Cantinho era também um sítio onde “se tinha a certeza que se era bem atendido e bem tratado” – e o favorito de muitos políticos e famosos. O leite de coco era (e ainda é) extraído à mão e o caril de gambas e o xacuti eram alguns dos pratos que lhe granjearam a popularidade.

“[Sebastião] tinha um jeito muito próprio. Era completamente fora da caixa. Quando o conheciam, as pessoas ficavam logo encantadas por ele”, descreve a neta, de 21 anos, Bruna Sousa. “Tinha logo uma ligação com os clientes. Dizia que estes iam lá a casa dele, que ele os recebia e que o cliente achava que escolhia, mas quem estava a mandar naquilo tudo era ele”, recorda ainda. Se diziam que não gostavam de algo, Sebastião respondia prontamente "não se preocupe, eu faço assim para si, tiro isto… Às vezes até entrava de uma maneira invasiva e dizia ‘você vai comer isto’”.

Duarte Calvão também se lembra assim de Sebastião: “[Tinha] uma autoridade simpática”.

De empregado a dono de restaurantes

Natural de Goa, Sebastião chegou com tenra idade a Portugal, “à procura de uma vida melhor”, com três outros amigos, conta a neta. Os pais tinham morrido quando era novo. Nunca tinha trabalhado em cozinha, mas foi esse o rumo que a vida lhe deu e aquela que se tornou a sua grande paixão. Deu o primeiro passo no restaurante Velha Goa, em Campo de Ourique, onde encontrou trabalho depois de pouco tempo a trabalhar numa metalúrgica.

“Começou do zero. Costumava dizer que para ser bom patrão é preciso saber ser empregado também”, recorda Bruna Sousa. Em pouco tempo, Sebastião tinha passado das limpezas a chef de sala. Aprendeu a cozinhar, em parte, na cozinha do restaurante, onde conheceu a mulher com quem se casou e teve três filhos (um dos quais, por afinidade). Os donos do Velha Goa – que considerava família e para a casa de quem Sebastião corria para passar parte do Natal – ajudaram a pagar a sua formação em hotelaria.

Em 1986, tomou conta de um antigo restaurante em São Bento e abriu o Cantinho da Paz. Durante alguns anos (entre 2005 e 2010), esteve também a explorar a Casa de Goa, em Alcântara, mas acabou por sair. A filha Ana Fernandes é quem nos últimos anos tem estado à frente da gestão diária do Cantinho da Paz, enquanto Sebastião se dedicava ao espaço mais recente, o Nova Goa, que abriu em 2010, no Campo Pequeno. 

Um dos primos em segundo grau, Jesus Lee Fernandes abriu o seu próprio restaurante de comida Goesa – Jesus é Goês –, em 2013, perto da Avenida da Liberdade, em Lisboa.

No Cantinho da Paz, o tempo pouco mudou. Quem lá regressa, dez ou 20 anos depois, encontra o sítio que tem guardado na memória, onde passavam momentos em família. Muitos dos clientes já são de segunda e terceira geração.

“Quando eu morrer, quero que os meus clientes estejam todos lá. Quero uma festa”, costumava dizer à neta. Assim foi. Alguns dos rapazes que na altura andavam pelas ruas de São Bento foram lembrar como Sebastião lhes ajudou a dar rumo à vida e até a financiar os estudos. Um deles, conta ainda Bruna, recordou como Sebastião lhe pagou o casamento: “Foi ao restaurante apresentar a namorada ao meu avô e passado uns tempos disse que ia pedir um empréstimo ao banco para se casar. O meu avô disse ‘não vais pedir empréstimo nenhum, para não ficares a dever dinheiro ao banco. Eu vou emprestar-to”. No primeiro dia de cada mês, o rapaz aparecia no restaurante, até saldar a dívida. “No final, o meu avô disse ‘confiei em ti, não tinha a certeza, mas vi que conseguias ser um rapaz de responsabilidade. Podia ter-te pago o casamento, mas fiz isto para ensinar-te a cumprir a palavra'”.

“Foi um pai para muitos miúdos que até se podiam ter perdido na altura”, comenta a filha, Ana Fernandes. “Fazia as coisas mas não as dizia. No velório dele, todos tinham uma história para contar.”

Quanto ao destino do Nova Goa, ainda estará por determinar, mas a vontade da família é mantê-lo, em honra do fundador, conta a filha Ana Fernandes. “Para ele trabalhar era um prazer. E cozinhar, então, era amor. Era o que ele dizia”.

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