“O óvulo é meu. Mas ela é que vai dar vida. É uma partilha total”

Casadas, Filipa e Maria estão a tentar ser mães biológicas do mesmo filho e recorreram à fertilização recíproca. "É a circunstância mais bonita”, dizem. No SNS, a maternidade biológica partilhada só é admitida nalguns casos. Pedidos para esta técnica ainda são raros.

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Nuno Ferreira Santos
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Quando decidiram que queriam ser mães, pensaram que a primeira a engravidar seria Filipa, 38 anos, porque ela é mais velha do que Maria, 35.

O projecto de maternidade nasceu no início do Verão. Em Setembro foram à primeira consulta numa clínica privada de procriação medicamente assistida (PMA). “Na minha cabeça a ideia de ter filhos e de constituir família existia havia muito tempo”, confessa Filipa.

Casadas havia dois anos, numa relação com cerca de cinco, estava na altura “de dar o próximo passo”, adiado por muitas razões. Professora universitária, Filipa achava que não podiam estar à espera da circunstância ideal. Dirigiram-se então à clínica IVI, em Lisboa, com a intenção de engravidar através de uma técnica "tradicional" de PMA.

Filipa acabou por descobrir que tinha um problema no útero. Ficou abatida com a notícia:

— Porque viemos com aquela ideia: 'Vamos, fazemos as análises, somos saudáveis, vai tudo correr normal.' E, de repente, deparo-me com um mioma e os níveis de fertilidade abaixo do mínimo.

Maria completa:

— Ela sempre teve muito mais vontade de ter filhos do que eu, foi um sonho mais dela. Comecei a ter essa vontade mais tarde. Depois com a notícia, ela ficou na dúvida sobre se deveria tentar [engravidar]. E sugeri ser eu a fazer a gestação.

Hoje costuma dizer a Filipa que ela só precisa é de ter óvulos.

— Porque a partir do momento em que os colocar na minha barriga vou segurá-los.

Na clínica informaram-se sobre várias técnicas, como a fertilização in vitro (a chamada FIV), ou seja, a união de um ovócito com o espermatozóide em laboratório, com o objectivo de obter embriões já fecundados para transferir para o útero.

Mas souberam entretanto de outra possibilidade, pouco conhecida em Portugal — até porque só há um ano é que o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) a autorizou numa deliberação que só seria divulgada nos media em Maio: a fertilização recíproca.

Conhecido como ROPA — sigla para recepção de óvulos da parceira — permite a partilha biológica da maternidade através de um processo em que as duas mulheres do casal participam de forma activa no projecto parental. Uma é sujeita a estimulação para colheita de ovócitos para a fertilização, com sémen de um dador, e a outra dá o seu útero para implantação do embrião transferido e sua gestação.

Filipa e Maria leram sobre o assunto já depois de se terem proposto para tratamentos de PMA. E decidiram avançar. Até agora são o primeiro e único caso nesta clínica privada — noutras há mais pedidos, segundo contactos feitos pelo PÚBLICO a uma dezena delas; não quiseram, contudo, especificar quantos. Já nos centros do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não chegarão “aos dedos de uma mão”, de acordo com a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução.

No gabinete do seu consultório, João Calheiros, médico da clínica IVI, explica que, desde que houve o alargamento da possibilidade de as mulheres solteiras fazerem tratamentos, a ROPA se apresentou como possibilidade. Mas “a lei tem preceitos".

Como lembrou em Janeiro, no seu parecer, o CNPMA, a lei refere que se deve privilegiar sempre as técnicas menos invasivas para as beneficiárias. “Talvez [a ROPA] não deva ser a primeira opção de um casal”, afirma o médico.

Tirando isso, a fertilização in vitro e a fertilização recíproca são equiparadas. Em ambos os casos a criança que nasce é considerada como filha da pessoa que beneficiou das técnicas de PMA e de quem com ela esteja casada ou unida de facto. A parentalidade é estabelecida no acto de registo.

“Desde que não haja inconveniente nem impossibilidade legal, não tenho nada contra”, afirma o médico. Globalmente, o tratamento dura quatro a cinco semanas, ou seja, um ciclo. Mas se houver contratempos pode durar mais.

ROPA devia ter sido primeira opção

No laboratório da clínica onde Filipa e Maria tentam ser mães, uma técnica faz uma micro-injecção, ou seja, coloca o espermatozóide no interior de um ovócito fazendo uma inseminação. A técnica olha para o microscópio e no ecrã do computador vemos uma tentativa de agarrar os espermatozóides activos. Apanhado um, a agulha espeta o óvulo: já está criado um embrião, que depois é colocado numa incubadora. “Conseguimos ver a evolução de um embrião a cada dez minutos”, explica a directora do laboratório de FIV, Sofia Nunes. A ideia é verificar se o ovócito fecundou correctamente, e a partir daí vigia-se o seu desenvolvimento até estar pronto para ser transferido para o útero materno já quando tem “alta probabilidade de dar azo a gravidez”.

Maria e Filipa não chegaram ainda a esta fase — o ovócito que vimos fecundar servirá para outro casal que procurou a clínica, candidato a uma normal FIV.

Desde Setembro que as duas andam em consultas. Em Novembro foram à clínica praticamente todas as semanas, mas não passaram à etapa seguinte porque Filipa só conseguiu tirar um óvulo, que entretanto ficou congelado. Tiveram que acertar os ciclos menstruais. “A gestante tem que preparar o útero e a doadora os óvulos”, explica Filipa.

A Maria parecia que estava com tensão pré-mestrual a toda a hora. Filipa sentiu-se como se estivesse sempre com o período, estava “inchada e com a sensibilidade própria” desse estado. "Pior são as injecções." Deve ter tomado umas 20 e tal no primeiro ciclo.

Apesar de Maria não sentir uma vontade tão grande de ser mãe como Filipa, este recurso ao ROPA acabou por ser “a melhor alternativa”, sublinha. “Vai fazer com que eu participe mais no desenvolvimento da criança, vou dar vida à criança."

Na altura, quando recebeu a notícia de que não podia engravidar naquele momento, Filipa “bloqueou”. Teve vontade de desistir e pensou “vamos embora”. Mas Maria tomou a decisão de ser ela a gestante e, de repente, tudo se tornou “muito emocional”. Concluíram que o ROPA até deveria ter sido a primeira opção, desde o início. Diz Filipa:

— A partilha é de 50%. O ADN é meu, o óvulo é meu, mas ela é que vai dar vida. Isso permite uma partilha total. É a circunstância mais bonita. Gostava de, no futuro, se houver possibilidade, fazer eu o inverso.

Já conversaram muito sobre as várias alternativas se o ROPA falhar, embora Maria diga que tenta “pensar positivo”. Uma hipótese é tentar engravidar por outro método que não com os óvulos de Filipa. Sobre a adopção “não estão tanto de acordo”, até porque há opções antes dessa. “Gostava mais de ter um filho meu”, admite Maria.

O método a que recorrem desafia, de alguma maneira, a ideia de que um casal homossexual não pode partilhar biologicamente a maternidade.

Olhando para trás, Filipa recorda que a relação das duas acompanhou várias fases, “passámos várias aprovações”: quando Maria, brasileira, se mudou para Portugal ainda não era permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo (mas depois puderam casar-se); decidiram ter filhos após ser alargada a PMA a casais de mulheres e a mulheres solteiras, em Junho de 2016; mais tarde, “chegou” o ROPA.

— As mulheres que pensem sobre isto, diz Filipa.

— Quanto mais tratarmos com naturalidade a nossa relação mais as outras pessoas vão olhar para nós com naturalidade, diz Maria.

SNS com listas de espera de dois anos

Porém, a ROPA não é para todas as bolsas. Até agora o orçamento do processo foi de cerca de cinco mil euros, sem a medicação, estimada “num mínimo de 500 euros”. Segundo a clínica IVI, a ROPA custa mais 400 euros do que os 5250 euros de uma FIV.  

As duas chegaram a falar da possibilidade de recorrer ao SNS.

— Fiquei a saber por um casal heterossexual amigo que a lista de espera era de dois anos. Conseguiram entretanto em Coimbra mas ela tem 39 anos, fez um tratamento, e não vai poder fazer mais porque acaba aos 40 anos.

De facto, o SNS só comparticipa a FIV e a injecção intracitoplasmática de espermatozóides às mulheres até aos 40 anos. A idade da inseminação intra-uterina pode ir até aos 42 anos.

Há uma semana, os centros públicos de PMA decidiram que só vão aplicar a ROPA quando exista indicação clínica para tal, nomeadamente quando a inseminação intra-uterina, menos invasiva e dispendiosa, não for possível ou não se verificar bem-sucedida nos dois membros do casal (ver texto ao lado) e quando a FIV for recomendada.

Filipa e Maria ainda só contaram os seus planos aos familiares próximos. Também por isso querem que a sua identidade se mantenha reservada nesta reportagem. No seu círculo a opção é e será bem aceite, acreditam.

Como poderá ser o filho de ambas é uma incógnita. Quem recorre a estas técnicas não pode escolher características ou o sexo. Mas é suposto aproximar-se o mais possível dos dois membros do casal ou, no caso de mulheres solteiras, da mãe. Na clínica, Filipa e Maria preencheram um inquérito com as suas características físicas, tiraram-lhes fotografias.

Não sabem absolutamente nada do doador, porque por lei tem de ser anónimo. Acham melhor assim.

— Prefiro que essa pessoa não exista agora nem nunca vá existir na minha cabeça, confessa Filipa. Eu tive que pensar no inverso: a dada altura tive duas propostas de dois amigos gays que queriam ter filhos. Mas acho que não faz qualquer sentido porque não faz parte do meu conceito familiar.

Maria completa:

— E nesse caso eu ia sentir-me excluída.

Já pensaram como é que a criança pode vir a chamar Filipa e Maria? As diferenças do português de Portugal e do Brasil facilitam. Maria responde a rir:

— Mamã a ela. E mamãe a mim. 

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