Qual o ADN herdado por uma criança com duas mães biológicas?

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Nuno Ferreira Santos

O que é a fertilização recíproca ou partilha biológica da maternidade?

São duas expressões diferentes para dizer a mesma coisa. Trata-se da possibilidade, prevista na lei, de um casal de mulheres conceber um filho recorrendo a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) e numa situação em que as duas mulheres são consideradas mães biológicas da criança. Em concreto, uma das mulheres do casal contribuiu com o ovócito que é fertilizado com espermatozóides de um dador e depois há uma transferência do embrião para o útero da outra mulher do casal.

As duas mulheres são consideradas mães biológicas da criança que nascer?

Sim. E essa é a principal diferença entre uma partilha biológica da maternidade e o recurso a uma outra técnica de PMA “tradicional”. No caso de uma gravidez que resultou da partilha biológica da maternidade, a criança terá o direito a ter o nome das duas mães biológicas nos seus documentos de identificação, o que já não acontece nos outros casos.

Qual é a diferença com a gestação de substituição?

Após uma gestação de substituição, a mulher que gerou a criança entrega-a à sua mãe biológica e não tem quaisquer direitos sobre ela.

A criança terá ADN da gestante, apesar do ovócito pertencer à outra mulher do casal?

Não. O ADN desta criança resulta da combinação dos genes transmitidos pelo ovócito e pelo espermatozóide. O facto de o embrião ser transferido para o útero de outra mulher não afecta a sua herança genética.

Que tipo de influência tem a gestante?

A gestante não é uma mera “incubadora”. O que faz, o que come, como se sente emocionalmente terá uma influência no feto. No entanto, isso não vai alterar o ADN da criança que será gerada.

A mulher do casal que vai gerar a criança tem alguma influência nos seus genes?

Não. Há, no entanto, as chamadas influências epigenéticas que consistem na variação da expressão dos genes, sem que exista uma modificação do ADN. “Os genes são submetidos a certos processos e podemos dizer que há sequências do ADN cuja expressão é influenciada por factores externos a esse ADN que estão relacionados com a gestante”, explica Alberto Barros, professor e director do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina do Porto e membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. O especialista dá um exemplo assumidamente “utópico”: “Imagine que tínhamos dois embriões exactamente iguais do ponto de vista do ADN e que os colocávamos em dois úteros diferentes, em duas mulheres. O resultado seria algo diferente, porque esses fenómenos epigenéticos seriam diferentes. O ADN seria o mesmo mas o resultado da expressão de alguns genes seria diferente.” Ou seja, no contexto da maternidade biológica partilhada há uma influência biológica, mas nunca uma contaminação genética. O ADN da criança permanece o mesmo.

A influência epigenética tem consequências na criança?

Há doenças que podem ter na sua base alterações ao nível do imprinting genómico (um fenómeno genético no qual certos genes são activados apenas numa das suas cópias, enquanto na outra é inactivado, sendo considerado um processo epigenético). “Normalmente, temos dois genes numa determinada zona e os dois genes expressam-se, mas há genes sujeitos a imprinting e nesses lotes apenas um é activado, o normal é manifestar-se o da origem materna ou o da origem paterna. Se se manifestarem os dois, isso vai dar uma situação de doença”, explica Alberto Barros.

Como sabemos que a activação de determinados genes é influenciada pela gestante e não é um processo apenas ligado à complexa criação de um novo ser?

Na verdade, não sabemos. “Não se pode afirmar que esses fenómenos epigenéticos são absolutamente dependentes da gestante, mas não se pode excluir que também possa existir essa intervenção”, refere o especialista. E conclui: “Quando falamos em factores epigenéticos, falamos em algo que está para além do que é genético e que ultrapassa o carácter da cadeia do ADN. Isso pode ser influenciado pelos próprios mecanismos metabólicos e moleculares do próprio feto mas também, ou e também, da gestante.”

É possível gerar um bebé com material genético de três pessoas?

Sim. São os chamados “filhos de três pais” e é um recurso usado para situações de infertilidade causadas por doenças genéticas. A técnica, que não tem enquadramento legal em Portugal, pode ter algumas variações na forma como é realizada mas, de uma forma geral, permite a fertilização in vitro (FIV) com o recurso a uma dadora de ovócito, um dador de espermatozóide e usar ainda o ovócito da mulher que vai gerar a criança. No Reino Unido, esta técnica foi aprovada em Março de 2015.

Já há alguns (poucos) casos conhecidos de crianças que nasceram após o recurso a esta técnica. Por exemplo, 2016 nasceu um bebé com “três pais”, após uma intervenção de uma equipa dos EUA no México, onde havia um vazio legal.

A intervenção evita doenças genéticas que estão associadas às mitocôndrias (as baterias das células, fora do núcleo celular) e que afectam uma em cada 6500 crianças. O ADN mitocondrial é transmitido exclusivamente pela mãe e representa menos de 1% do ADN de qualquer pessoa, que tem todo o resto do seu material genético nos cromossomas do núcleo das células – quase 23.000 genes. Por isso, uma dadora de mitocôndrias contribui com uma percentagem muito reduzida de ADN de uma criança gerada com esta técnica. É o património genético que recebeu da mãe e do pai, no núcleo das células, que compõe a quase totalidade do ADN herdado por esta criança.

Que designação é mais correcta para o conceito legal que reconhece duas mães biológicas?

Tal como começámos por referir, os dois termos referem-se à mesma situação. A lei, os pareceres, muitos especialistas e a maioria das clínicas usam o termo “fertilização recíproca”. Alberto Barros admite ao PÚBLICO que o termo “partilha biológica da maternidade”, que também consta no parecer do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida de Janeiro de 2017, lhe parece mais correcto. “Fertilização recíproca é estranho, quase parece que se estão a fecundar uma à outra, não é um termo feliz. Prefiro falar em partilha biológica da maternidade. É disso que se trata.” 

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