A integridade pública em suaves prestações

Quando nasceu, em 2016, a comissão já vinha com projetos de lei em carteira. Isto significa que se prescreve a cura antes de se estudar com rigor a doença.

Quando a política trata questões espinhosas como conflitos de interesses e falhas éticas é geralmente em reação a escândalos mediáticos. Aos solavancos, portanto, não por ação mas por reação. A comissão parlamentar para a Transparência, a que o PS adicionou agora um conjunto de novas propostas, sofre deste mal cultural. Quando nasceu, em abril de 2016, já vinha com projetos de lei em carteira. Isto, parecendo normal, significa que se prescreve a cura antes de se estudar com rigor a doença.

As novas propostas do PS – que só o tempo e a discussão pública permitirão avaliar em detalhe – respondem a duas prioridades: apertar as regras de conduta dos deputados (estendendo incompatibilidades e impedimentos e criando um novo código de conduta) e regular a representação de interesses (o mal afamado lóbi). Problemas de fundo que se dão mal com soluções superficiais.

O Código de Conduta proposto para os deputados reproduz no essencial o que o Governo criou depois do famoso “Galpgate” – mas que nem se revelou capaz de enquadrar e resolver a polémica recente de Mário Centeno com o Benfica. Tal como para o Governo, propõe-se regular ofertas e hospitalidade – como se garrafas de vinho e quartos de hotel fossem o único problema de conduta dos políticos. Mesmo a limitação à aceitação de viagens e hospitalidade tem tantas exceções que na prática proíbe apenas as viagens de lazer. Tudo o que possa ser justificável como trabalho parlamentar continua a poder ser aceite pelo deputado – e pago por um interesse externo –, incluindo eventuais congressos em Aruba ou megafestivais tecnológicos na Califórnia.

Na regulação do lóbi o problema é semelhante. A ideia, útil e necessária, é definir regras e criar obrigações de transparência a quem tenta influenciar os processos de decisão pública. Mas age praticamente só sobre quem influencia – os grupos de pressão – e praticamente nada sobre quem é influenciado – os decisores políticos. De pouco servirá regular os lobistas num contexto como o português, em que o lóbi se faz informalmente e sem empresas de intermediação. Mais importante seria criar ferramentas de transparência do próprio Parlamento, nomeadamente tornando públicas as agendas dos deputados para sabermos, em tempo real (ou o mais perto disso possível) quem se reuniu com quem, quando e a que propósito. Ou acompanharmos, a par e passo, quem forneceu estudos, pareceres e opiniões, e de que teor, sobre os temas na agenda pública – precisamente tudo o que faltou, por exemplo, no processo de revisão da lei de financiamento político.

O papel dos partidos é apresentar soluções, é certo. Mas fazê-lo sem confrontar de frente os problemas e sem perceber como eles se relacionam entre si é criar uma manta de retalhos legal e regulatória que deixa sempre buracos por tapar e tem demonstrado pouca eficácia prática na prevenção de novos escândalos. Nesse sentido, o trabalho da Comissão para a Transparência arrisca ser mais uma oportunidade perdida. E já não sobram muitas.

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