Egípcios já sabem quando votam, só falta o vencedor anunciar que é candidato

Março é a data das próximas presidenciais, mas ainda é cedo para saber quem consegue de facto candidatar-se. O opositor Khaled Ali promete ficar até ao fim. O Presidente Sissi adia o anúncio da recandidatura.

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Cartaz da candidatura de Sissi numa rua do Cairo KHALED ELFIQI/EPA
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Sisso com Macron em Paris PHILIPPE WOJAZER/Reuters
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O Presidente egípcio esteve em Portugal em Novembro de 2016 Enric Vives-Rubio

O actual Presidente ainda não anunciou a intenção de se recandidatar, mas na semana em que as presidenciais egípcias foram marcadas basta ligar a televisão para acreditar que Abdel Fattah al-Sissi não só é candidato como provavelmente é o único pretendente ao cargo que ocupa. Dias antes de a Comissão Eleitoral anunciar que as eleições vão decorrer em Março (de 26 a 28), com segunda volta em Abril, mais de 500 deputados numa Assembleia de 596 fizeram saber que recomendam a Sissi apresentar-se a votos.

Há quatro anos, um dos rivais de Sissi que decidiu questionar os resultados e o escrutínio, Hamdeen Sabahi, descreveu a contagem inicial (que lhe atribuiu 3,09%, quando em 2012 obtivera 21,5%) como “um insulto à inteligência dos egípcios”. O insulto mais óbvio, até agora, é o recuo na intenção de concorrer de Ahmed Shafiq, antigo primeiro-ministro que em 2012, depois da revolta que afastou Hosni Mubarak, levou Mohamed Morsi (Irmandade Muçulmana) a uma segunda volta. Sissi foi proclamado com 96,9%.

Shafiq, que se tinha exilado depois de ser absolvido num processo de corrupção, anunciou a sua candidatura a 27 de Novembro, ainda a partir dos Emirados Árabes Unidos, onde viveu nos últimos anos. Falou na necessidade de “sangue novo” e disse que regressaria em breve ao Egipto. Assim foi, mas não como esperava. Menos de uma semana depois, a 2 de Dezembro, era expulso por Abu Dhabi e forçado a voltar ao Cairo. Durante 24 horas a família não soube do seu paradeiro.

Quando reapareceu, deu uma entrevista ao canal privado Dream Tv para desmentir que tivesse estado detido e anunciar que reconsiderara a decisão de voltar a apresentar-se na corrida à presidência. “Não sou a pessoa ideal para gerir os assuntos do Estado”, disse, justificando-se com os anos nos Emirados. Uma ausência de mais de cinco anos que o terá impedido de “seguir atentamente os progressos e sucessos do país”.

Ninguém duvida que Shafiq foi convencido a desistir pelo aparelho do Estado – que é o mesmo que o militar. Desde o golpe que em 2013 derrubou Mohamed Morsi, o primeiro chefe de Estado eleito livremente no país, Sissi governa com mão de ferro e sem qualquer oposição.

Shafiq está fora, mas há sempre egípcios decididos a tentar, literalmente contra tudo e contra todos, depois de uma legislatura em que 60 mil pessoas foram detidas por motivos políticos. Só nos últimos dois anos cem prisioneiros foram executados a 1700 pessoas desapareceram.

“Em 28 anos de trabalho pelos direitos humanos nunca vi tempos tão obscuros e negros para o movimento como estes. E nunca imaginei que chegássemos a isto”, dizia ao PÚBLICO há pouco mais de um ano Gamal Eid, o mais conhecido dos advogados de direitos humanos do Egipto, director do Rede Árabe para a Informação sobre Direitos Humanos, com várias passagens pelas cadeias do Egipto e impedido, como tantos, de deixar o país.

Sem Shafiq, de 73 anos, o único nome que reúne alguma expectativa entre os egípcios que desistiram de ligar a política, a maioria jovens desiludidos desde que os militares lhes roubaram a sua revolução, é o de Khaled Ali, advogado e activista de 45 anos que quase ninguém conhecia até liderar a luta pela soberania de duas ilhas à entrada do Golfo de Aqaba que Sissi decidira oferecer aos sauditas em agradecimento pela sua ajuda milionária (incluindo no combate à Irmandade Muçulmana).

Num país onde os juízes não são conhecidos pela sua independência face ao poder político, Ali venceu em tribunal, que declarou que as ilhas eram originalmente egípcias e não sauditas. Claro que foi apenas uma vitória simbólica – o Parlamento apressou-se a contornar a decisão do tribunal, garantindo que a transferência das ilhas disputadas ia mesmo acontecer.

Cada vez pior

A decisão de oferecer as ilhas esteve por trás da última vaga de protestos, com milhares a saírem à rua em Abril de 2016 para contestar Sissi. A partir daí, o regime lançou-se numa guerra ainda mais dura contra os media (incluindo um raide inédito ao Sindicato dos Jornalistas no Cairo), que estavam proibidos de noticiar manifestações ou de dar voz aos críticos da entrega das ilhas, e proibindo a saída do país de activistas de direitos humanos, aprovando leis duríssimas contra organizações não governamentais e banindo qualquer tipo de protesto.

As ilhas foram, Ali ficou, determinado a desafiar o sistema autocrático dos generais que sempre governaram o Egipto desde a independência. Nos media, tornou-se saco de pancada. Em Dezembro, o jornal estatal nacionalista Al-Gomhuria publicou um artigo de opinião de uma página, assinado pelo director, com o título “Khaled Ali e a farsa do anão”, em que descrevia o candidato como alguém obcecado com a autoridade e acusando-o de ser financiado secretamente pela União Europeia.

A mesma União Europeia que tem elogiado a presidência de Sissi. Fizeram-no o Governo e o Presidente portugueses quando o receberam, em Novembro de 2016. Mais recentemente, em Outubro, foi a vez de Emmanuel Macron o hospedar em Paris, onde assinou um acordo para a compra de aviões de combate e software de vigilância no valor de seis mil milhões de euros.

Um pouco antes, em Agosto, Sissi assinou um acordo com a Alemanha para travar a vinda de refugiados para a Europa – durante uma anterior visita ao Cairo, o ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Sigmar Gabriel, chegou a dizer a interlocutores egípcios que tinham “um presidente impressionante”.

“I am Khaled Ali”

“Sou visto como um traidor financiado a partir do estrangeiro”, diz Ali, numa entrevista ao diário britânico The Guardian. Questionado sobre se as suas propostas de alargar a cobertura de cuidados de saúde e instituir um salário mínimo o tornam comparável a Bernie Sanders ou Jeremy Corbyn, deu a única resposta em inglês da conversa: “I am Khaled Ali”, antes de soltar várias gargalhadas.

A sua campanha enfrenta ameaças desde que foi lançada, incluindo raides da polícia a gráficas que imprimiam material como cartazes e brochuras – raides que a polícia nega que tenham sequer acontecido – e já lhe foram retirados convites para falar e promessas de apoios, depois de avisos das autoridades. "Fui convidado para jantar na baixa no Cairo e no dia seguinte todos os cafés nessa rua estavam fechados e toda a gente tinha sido incomodada pela polícia”, conta.

Claro que como qualquer bom candidato egípcio, Ali está a ser julgado. Um advogado próximo do Governo, Samir Sabry, acusou-o de “fazer um gesto obsceno” durante as celebrações da vitória que obteve em tribunal por causa das ilhas. Ali recorreu e deveria ter havido uma decisão a 3 de Janeiro. Foi adiada para 7 de Março, semanas antes da primeira volta das eleições, o que significa que pode ser desqualificado quase em cima da meta. Entretanto, o tribunal analisa as imagens disponíveis, à procura do tal gesto.

“Estão de volta”

Apesar das “condições injustas da competição”, Ali garante que não vai desistir. “Não viramos costas a esta batalha num tempo como este”, afirmou, apelando aos jovens que encheram a Praça Tahrir do Cairo em 2011 para o apoiarem. Ele sabe que conseguir entusiasmar estes desiludidos, afastando-os de um potencial boicote, é a sua melhor estratégia. Deu um passo importante para isso, ao obter o apoio do Movimento 6 de Abril, criado nos últimos anos de Mubarak e fundamental na organização dos protestos de Janeiro de 2011.

“Este é um dos grupos que disse que nunca apoiariam mais nenhuma eleição – e aqui estão eles, estão de volta!”, disse ao Guardian, “visivelmente animado”, mostrando um panfleto onde o 6 de Abril lhe declara o apoio. Por causa desse mesmo apoio também há quem considere que Ali será sempre visto pela maioria dos egípcios como estando “à parte”, não tendo suficiente reconhecimento nem a imagem de homem forte capaz de melhorar a economia ou combater o terrorismo.

Talvez nem o próprio Ali acredite que pode vencer nem o 6 de Abril pense que estas eleições são para levar a sério. Pode ser que um e outros queiram apenas mostrar que o Egipto ainda está vivo para lá do poder do novo Mubarak. Se as eleições de Março mostrarem verdadeira competição isso já será uma extraordinária notícia.

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