Líder do Egipto aterra em Lisboa sob críticas da Amnistia Internacional

Custo de vida explode e o pior está para vir. Num país com 94 milhões, um quarto deles a viver na pobreza, pode faltar liberdade, mas, se não há açúcar, os ânimos aquecem.

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Para além da inflação galopantes e da decisão de desvalorizar a moeda, tem faltado um pouco de tudo MOHAMED EL-SHAHED/AFP

Abdul Fattah al-Sissi torna-se nesta segunda-feira o primeiro chefe de Estado egípcio a visitar Portugal em 20 anos. Aterra com o Egipto numa crise económica aguda e vem à procura de investidores, deixando um país que lidera desde 2013 e que a Amnistia Internacional portuguesa diz que enfrenta “falta de liberdade de expressão, repressão à sociedade civil, perseguição e intimidação, desaparecimentos forçados e maus-tratos nas prisões”.

Em antecipação da visita a Portugal, a Amnistia teve uma reunião no Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde alertou para uma “realidade alarmante”. Para o director-executivo, Pedro Neto, a vinda de Sissi, é “uma oportunidade de apelo às autoridades egípcias para que revertam este caminho”. Portugal, afirmou ainda, à Lusa, “tem todas as condições para ser um líder no que toca ao trabalho da diplomacia na questão dos direitos humanos”.

Sissi chega dias depois de ter conseguido a garantia de um empréstimo de 12 mil milhões de dólares (11 mil milhões de euros) do Fundo Monetário Internacional e a seguir a ter tido autorização do Banco Central a desvalorizar a lira (desvalorizou quase 50% em relação ao dólar no espaço de uma semana), na expectativa de atrair investimento e relançar a produtividade.

No imediato, ninguém duvida que a situação vai piorar para a esmagadora maioria dos egípcios. A inflação, actualmente nos 14%, “pode ultrapassar os 20% no próximo ano e meio”, antecipa Omar el-Shenety, director do banco de investimento Multiples, ouvido pela AFP.

De acordo com as reformas prometidas ao FMI, o Estado deixará de subsidiar uma série de produtos – um quarto dos 93 milhões de egípcios vive na pobreza e mais de 80 milhões compram alimentos subsidiados pelo Governo –, descerá as subvenções na electricidade e aumentará o IVA. “Os egípcios vão ter dois anos difíceis”, diz Amr Adly, professor de Economia na Universidade Americana do Cairo.

No dia 11 deste mês havia um apelo para manifestações. Os argumentos apresentados para o protesto eram precisamente os aumentos dos preços e as faltas regulares de bens básicos nas lojas. Surgiram contas no Twitter e páginas no Facebook seguidas por dezenas de milhares de pessoas.

Mas nem uma só saiu à rua. Líderes de diferentes movimentos, incluindo o 6 de Abril, instrumental na mobilização anti-Hosni Mubarak, decidiram não seguir apelos “misteriosos como os do Tamarod [grupo que protestou contra Mohamed Morsi, o Presidente eleito em 2012 e derrubado pelos militares um ano depois], que descobrimos demasiado tarde ser formado pelos próprios organismos de segurança, os mukhabarat [serviços secretos]”.

Mamdouh Habashi, presidente da Aliança Popular Socialista, tomou a mesma decisão. “Certas partes do regime têm a vontade de fechar o que resta de espaço público ainda aberto”, disse à RFI. “Este espaço muito pequeno, querem fechá-lo completamente. Para isso, precisam de um motivo. Encorajar as pessoas a saírem à rua pode fazer parte do plano: as pessoas ficam feridas e estando mal organizadas, é fácil provocar o caos. Seria uma boa ocasião para mostrar mão de ferro, encerrar tudo, prender em massa.”

Pão, liberdade e justiça

O Egipto de Mubarak assistiu a uma enorme revolução – roubada, é certo, pelos militares. A 25 de Janeiro de 2011, no primeiro de 18 dias de protestos, só no Cairo houve um milhão de pessoas na rua. No Egipto de Sissi, ninguém confia sequer nos apelos para uma manifestação de crítica ao regime. É mais lógico pensar que se trata de uma conspiração do próprio poder.

Há cinco anos, o Egipto uniu-se debaixo de um grito. “Pão, liberdade e justiça social”, exigia-se na praça Tahrir. Está tudo por cumprir e o mais provável é que seja o pão que acabe por convencer de novo os egípcios a arriscar tudo. Para além da inflação galopantes e da desvalorização da moeda, nos últimos meses e semanas, tem faltado um pouco de tudo, medicamentos, combustível usado para cozinhar, leite para bebés, e, mais grave para muitos, açúcar.

Em Outubro, faltou açúcar nas prateleiras das lojas durante semanas. “Ninguém o suporta mais”, disse ao New York Times Ahmed el-Gebaly, a falar de Sissi. “O açúcar é como o arroz e o óleo e a farinha, nunca se pode não ter. Não se pode brincar com isto. Quem é que pode viver sem açúcar?”, questionava o dono de uma mercearia em Bulaq, bairro do Cairo. “As pessoas vão-se passar.”

A gasolina subiu do equivalente a 16 cêntimos para 21 cêntimos, este mês; o açúcar, quando há, passou de seis cêntimos cada meio quilo para 15; o preço do arroz duplicou; os legumes e a fruta nunca estiveram tão caros, tudo por causa do preço do transporte, que aumentou entre 30 e 40%.

Num Egipto que deixou de se manifestar em massa mas nunca deixou de protestar, os estudantes da Universidade Americana do Cairo estão furiosos. Há dias que marcham no interior do campus, exigindo que seja estabelecido um limite para o valor das propinas – como este é estabelecido em função do dólar, a desvalorização da lira lançou o caos. Depois do início dos protestos, a administração aceitou manter as propinas deste semestre baseadas numa taxa de 8,8 liras por dólar; no próximo semestre já ninguém sabe.

Crise chega à elite

“Quando a crise económica chega à elite, significa que o sofrimento está por toda a parte”, diz Malak Rostom, vice-presidente da associação de estudantes, ouvido pelo mesmo diário nova-iorquino New York Times. “Se nós não podemos pagar, percebe-se quanto estarão as outras pessoas a sofrer.”

O que resta do protesto activista no Egipto são essencialmente greves e manifestações de trabalhadores descontentes com os ataques que os seus direitos têm sofrido e com a degradação das condições de vida. Estes protestos são silenciados nos media, mas com a crise só podem aumentar.

Entretanto, a repressão não dá tréguas. Sábado, um tribunal do Cairo condenou três dirigentes do Sindicato dos Jornalistas, incluindo o presidente, a dois anos de prisão por terem dado “abrigo” a outros dois jornalistas procurados pelas forças de segurança. Estes eram procurados, e chegaram a estar detidos, por noticiarem os protestos de Abril (os maiores da era Sissi) contra a decisão do Presidente de entregar aos aliados sauditas duas ilhas disputadas no mar Vermelho.

Antes, na terça-feira, o Parlamento aprovou um projecto de lei que obriga qualquer organização não-governamental a pedir autorização para todas as actividades (um estudo, por exemplo) e, de novo, para a publicação de qualquer resultado de qualquer análise. Mohamed Zaree, do Instituto para o Estudo dos Direitos Humanos do Cairo descreve uma lei “sem precedentes na sua repressão, é a forma de o Estado declarar guerra às organizações de direitos humanos”.

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